As Cidades e as Trocas
Jemma Desai
3 de Maio de 2023

I

As palavras inglesas tourist/tourism (turista/turismo) derivam da palavra tour (volta, viagem), que vem do inglês arcaico turian, do francês arcaico torner, do latim tornare “girar num torno”, que por sua vez vem do grego antigo tornos (τόρνος) — “torno”.

“Um torno é uma ferramenta mecânica que faz girar uma peça sobre um eixo de rotação para realizar diferentes operações, como cortar, lixar, serrilhar, perfurar, deformar, revestir e tornear, com ferramentas que são aplicadas à peça para criar um objeto com simetria sobre esse eixo.”[1]

II

Imaginem areia a verter numa ampulheta, mas inclinem o seu eixo — para a aresta de um triângulo. Dentro da ampulheta uma boca esfomeada liga, lenta e gradualmente, duas barrigas. Ao constituir o lado da forma maior, abre a boca que forma a sua fome a partir de um ponto em que todo o poder e significado irão convergir.

Há membros compridos que escavam a terra para extrair aquilo que foi fornecido: subir e regressar. A brisa torra ao sol, concretizando outra oferta; as lajes de outro convite a reunir.

Primeiro: o ritmo é constante. Membro a membro — alguns têm de parar, para que outros possam escavar mais fundo, para que menos possam acumular mais, para que este menos/mais possa passar para a frente e para trás, para a frente e para trás.

A recapitulação é importante: é a ilusão do cerco da qual todos dependemos. É o feitiço da volta. Neste ensaio da reciprocidade salta-se um batimento e cai a máscara: revela-se que aquilo que foi dado (tirado) nunca pode ser restaurado.

III

Agora a ampulheta encontra-se num eixo vertical. Imaginem-na a reter o tempo e os seus ritmos, não entre duas barrigas, mas através de dois olhos.

Aqui outro cerco, desta vez uma manifestação: um forte e uma cercadura.[2]

Aqui mover-nos-emos com aqueles reunidos pelo tambor.

Aqueles que esfregam a noite por todo o corpo e ocupam as ruas. Aqui, vamos senti-los; batida e ritmo.

Esta cortina de tinta vai desestabilizar o quadro.

Os olhos fecham-se para limpar o brilho negro nas pálpebras, é apenas através deste capuz que tudo pode ser visto. No ritmo que o corpo recorda, passado presente e futuro tremem numa trança; três fios a ondular ainda que distintos. Cada um incompleto por si só, cada um emaranhado na conclusão do outro.

A ampulheta inclina-se e a trança desembaraça-se.


IV

A tinta brilhante da memória não é para todos.

No horizonte, chega um navio. Aqui vem o panóptico esfomeado por quem a areia tem estado a verter. O leviatã que tem esferas únicas bordadas no flanco. Das suas entranhas vazam centenas de gafanhotos, à espera de reunir as migalhas do encontro — as que podem ser isoladas, ampliadas, viradas uma e outra vez.[3]

Vejam como os olhos se arregalam para destrançar a trança. Vejam como seguram com firmeza a secção do presente (como crianças a quem se mostram os segredos de um truque de magia[4]). Que magia torna o presente uma dádiva, não uma história de roubo sangrento?

(Procurem por estes encantamentos; Jugaad na Índia, zizhu chuangxin na China, gambiarra no Brasil — sintam como tornam pequenos os lugares, para tornar outros grandes.)[5]

Vejam agora como as crianças desejam o passar do passado. Escutem o som de (in)liberdades passadas — reparem como fica na superfície da parte superior do corpo. Olhos nos olhos, cabeças em frente. ajudas a cantar[6]

Escutem/observem outro movimento. Aquele que balança para incluir o que está escondido nas margens do palco. Observem a forma como a música é cantada aqui, quando a margem é centro. Observem como viaja da ligação ao chão, pelas partes inferiores, até ao chakra da garganta.

Vejam como os olhos se encontram bem fechados. A mão no coração.

Escutem ali, num outro quadro estável, a forma como as cordas da kora são dedilhadas — deslumbrantes, fluídas, cristalinas. Kora significa viagem, mas não a garantia da chegada. Um reentraçamento vibratório — precipitado, claro, brilhante, move o quadro para uma fluidez espinal. Uma ondulação que nos faz regressar à água profunda. (Porque nenhum deles consegue parar o tempo)[7]

Observem/escutem como este som cai em cascata através do olhar. Observem como outra pintura de memória se encontra misturada com o mar, aplicada na brisa que torrou ao sol. Tudo isto é feito através do olhar.[8]


[1] em Capítulo 7 de US Army Training Circulation publicado em 1996 (Chemical Engineering Department, Carnegie Mellon University website).

[2] Moten, Fred, e Stefano Harney. 2013. The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study.

[3] Kincaid, Jamaica. 2018. A Small Place.

[4] Kincaid, Jamaica. 2018. A Small Place.

[5] Kincaid, Jamaica. 2018. A Small Place.

[6] Bob Marley — Redemption Song, cantado aos 105 minutos.

[7] Bob Marley — Redemption Song, cantado aos 105 minutos.

[8] Dito aos 127 minutos.

Jemma Desai

Doutoranda na Central School of Speech and Drama (Londres), presentemente a pensar através de ideias de liberdade em imagens em movimento e performance, Jemma Desai relaciona-se com programação de cinema através da pesquisa, da escrita, da performance e da pedagogia. Trabalhou por toda a indústria cinematográfica, em lugares como Berwick Film & Media Arts Festival, Blackstar Film Festival, BFI e British Council, e baseia a sua investigação nestas experiências, encontrando formas de refletir sobre como o imperialismo se replica através de processos de trabalho institucionalizados, afetando as várias maneiras como nos relacionamos através da arte.

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