“A lei é justa, meu filho. São as pessoas que são injustas. O juiz segue as leis de Deus e a vontade de Deus.”
Estas são as palavras finais do pai de Ahmed antes de ser injustamente executado em The Blazing Sun (1954), de Youssef Chahine, um filme que coloca em causa a justiça, a inocência e a punição num Egito atravessado por rápidas transformações políticas. Embora estas palavras surjam como uma rendição humilde à ordem divina, para mim funcionam como um vórtice que concentra a desilusão central retratada nesta obra: a lei, longe de ser neutra e sagrada, é uma construção histórica das instituições humanas, destinada a proteger a propriedade, a hierarquia e os interesses das classes dominantes. As palavras do pai refletem, assim, uma ideologia interiorizada e, atrevo-me a dizer, a própria ausência de Deus. Neste sentido, The Blazing Sun torna-se numa parábola trágica, não apenas sobre a perda pessoal, mas sobre a injustiça sistémica disfarçada de autoridade moral, num tempo suspenso entre o feudalismo e o capitalismo. O filme não deve ser encarado apenas como um melodrama, mas também como um relato político escrito no rescaldo da Revolução Egípcia de 1952, trazendo à superfície os conflitos de um Egito pós-revolucionário ainda assombrado pelos fantasmas do passado — e, ao mesmo tempo, imbuído da urgência, da ambiguidade e da força de uma sociedade à beira da transformação.
A narrativa acompanha a história de Ahmed (um Omar Sharif surpreendentemente jovem na sua estreia), um engenheiro agrónomo idealista de origem humilde, apanhado numa amarga disputa entre duas famílias latifundiárias do Alto Egito: o nobre Sheikh e o corrupto Paxá. Ahmed envolve-se num romance interclassista com Amal (a radiante Faten Hamama), filha do Paxá, e acaba por se ver enredado numa disputa de terras que rapidamente descamba em intriga, violência e, por fim, assassinato. Colocado à prova tanto no seu amor romântico como na lealdade aos seus princípios, enfrenta uma batalha moral e legal que expõe a corrupção profundamente enraizada no poder e as suas repercussões. Esse enviesamento estrutural, comum a muitos filmes da época e da região, manifesta-se através de uma certa moralidade a preto-e-branco (como o próprio formato do filme), onde os pobres são os bons e os ricos, os maus. O Sheikh e o pai de Ahmed são retratados como vítimas da sua virtude imaculada e da sua consciência. Já o Paxá, símbolo da decadência aristocrática, não é apenas um assassino, mas um homem que racionaliza a sua violência em nome do amor paternal e da proteção. Numa confissão surpreendente, diz à filha Amal que cometeu os seus crimes por ela, para que pudessem “ser senhores para sempre”. Entretanto, a própria Amal torna-se um peão nas negociações do poder masculino — o seu primo aceita casar-se com ela em troca de cumprir a ordem do Paxá de eliminar o falso testemunho, sublinhando como as mulheres, tal como a terra, são trocadas, possuídas e sacrificadas nesta economia patriarcal. Um cenário nada surpreendente para um filme com apenas uma personagem feminina.
O envolvimento do filme com a justiça é tanto temático como estrutural. A cena do tribunal não é apenas um ponto de viragem dramático, mas também um metacomentário sobre como a justiça está desde sempre mediada pela classe, pela perceção e pela hierarquia social. Embora se situe no Egito, o processo judicial carrega o selo da influência colonial britânica — procedimentos que parecem imparciais à superfície, mas que servem, na realidade, as estruturas de poder enraizadas. É o tribunal da opinião pública, mais do que o código legal, que decide sobre a culpa e a inocência. Além disso, o amor de Ahmed por Amal (e o amor dela por ele) não é apenas romântico, mas, diria eu, audaciosamente político, ao desafiar a lógica feudal de castas que define a vida na aldeia, vislumbrando um futuro onde as fronteiras de classe possam ser transgredidas. Claro que tais transgressões têm consequências, como o filme bem demonstra; mas também revela a futilidade dessas divisões sociais. O que emerge é uma questão mais profunda — uma questão que há mais de um século interessa a criminólogos, anarquistas e abolicionistas: como pode a “inocência” ser preservada num sistema onde o dano está estruturalmente inscrito? E, mais desafiante ainda: como se pode lidar com o dano sem o transformar num “crime”?
Este questionamento contemplativo, entretanto, alcança o espectador através de um vocabulário visual e sonoro rico. A paisagem egípcia (desta vez não política, mas física) não é apenas um pano de fundo, mas uma personagem por direito próprio: extensões áridas de terra, templos antigos como Karnak e os espaços míticos do Vale dos Reis recordam-nos que a história está sempre presente, em camadas, por resolver. Perdemo-nos num labirinto de legados antigos e numa paisagem sonora assombrosa, repleta de coros, vozes sobrepostas e ruídos atmosféricos que nos mergulham no tumulto emocional e político. A questão da justiça, assim, torna-se uma preocupação filosófica e existencial que transcende os limites do tempo.
Não sei se foi intencional ou coincidência — mas foi, sem dúvida, auspicioso — que, no final do filme, todas as principais figuras paternas morram: o pai de Ahmed, o Paxá (pai de Amal) e o Sheikh (pai de Selim). Sugere-se, talvez, não apenas o colapso da autoridade patriarcal e capitalista, mas a possibilidade de um novo começo. Chahine acena para um Egito onde a justiça poderá não ser apenas domínio da lei, mas do povo disposto a imaginar uma nova ordem. Uma promessa de um sol que arderá por futuros mais luminosos.
Ece Canlı
Ece Canlı é uma investigadora, artista e música cujo trabalho cruza regimes materiais, políticas do corpo e performatividade. É doutorada em Design pela Universidade do Porto e é atualmente investigadora no CECS da Universidade do Minho, onde investiga as condições espaciais, materiais e tecnológicas do sistema de justiça criminal, o encarceramento queer, o design penal e o feminismo da abolição. Como artista, emprega técnicas vocais estendidas e eletrónica para criar som para performances encenadas, exposições e filmes, tanto em colaboração como a solo.
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