Los placeres ocultos, Eloy de la Iglesia
Ricardo Braun
May 14, 2023

1976 estava entre duas Espanhas: a passada e a futura. Depois da morte de Franco, em novembro de 1975, o país começou um processo de transição democrática, mas, ao contrário do que aconteceu em Portugal (“o dia inicial inteiro e limpo”), foi um processo negociado, sem intervenção das forças armadas, e fez-se por sucessivas reformas: assim se explica que só no final de 1977 tenha acabado definitivamente a censura. Entra Eloy de la Iglesia. Rodado em 1976, Los placeres ocultos esteve meses proibido pela censura e só estreou em março de 1977. Com a morte do ditador, os seus filmes começavam a falar abertamente da sexualidade (e da homossexualidade) no quadro das transformações sociais e políticas que se operavam então: como algo da vida plena e da liberdade. Porquê a relutância em tratar a homossexualidade como uma questão política? De la Iglesia acusa a sua área ideológica: “Porque é que a esquerda segue a direita nessa posição ‘homoerotofóbica’? Possivelmente porque nunca debateu sobre o assunto. Possivelmente porque nunca chegou à conclusão de que o problema sexual tem implicações tão profundas como outros problemas culturais ou económicos.” Resumindo: o pessoal é político.

O filme abre com o corpo nu de um rapaz e uma nota metida ao bolso. Com o seu dinheiro, Eduardo (Simón Andreu: todo culpa e desejo) compra o direito de olhar e levar para a cama aquele rapaz. (Não voltaremos a vê-lo.) Estamos na segunda casa de Eduardo. A primeira é a da família e do emprego: da respeitabilidade social. Um dia, Eduardo vê o jovem Miguel e não o consegue comprar. Mas não desiste. O que começa desejo torna-se uma coisa sem nome. (O melodrama, isto é, o gesto de complicar impossivelmente uma história simples, é uma bela forma de expor os interditos de uma sociedade, que determinam as regras do jogo.) “Com este rapaz em que fase estás”, pergunta Raúl, antigo amante de Eduardo, “a começar ou a acabar?” Los placeres ocultos abre uma trilogia sobre sexualidade e poder. Nos filmes seguintes, El sacerdote e El diputado, é o poder religioso e político. Aqui é o poder do dinheiro. “Sempre utilizaste um procedimento infalível: a corrupção.” Raúl dá voz à mensagem política: ao discurso dos primeiros grupos que lutavam pelos direitos dos homossexuais como uma questão social, de grupo. “Não tenho remédio, pois não?”, pergunta Eduardo. Raúl responde: “Para isso era preciso remediar antes muitas outras coisas.”

De la Iglesia: “Aqui voltamos ao problema anterior: a homossexualidade é considerada um crime, uma vergonha, um flagelo… E isso transforma o homossexual num delinquente, porque o força a uma clandestinidade sexual.” O filme mostra isso bem, os lugares de cruising, os quartos de banho, os cinemas, os bares: o sexo possível, os corpos à venda. Na verdade, tem prazer nisso: porque o olhar de Eloy de la Iglesia é político, mas motivado pelo desejo. E é essa persistência do olhar que complica aqueles corpos: os rapazes da vida (como diria Pasolini) que se compram com uma nota de quinhentos, alguns menores, tratados como bens de consumo numa economia paralela, a da prostituição masculina. Falei de duas Espanhas, passada e futura, mas podia ter falado da rica e da pobre: a da casa de Eduardo e a da casa de Miguel. Se ambos estão à margem (de formas diferentes), um tem poder económico sobre o outro: para um ter duas vidas, o outro não tem nenhuma.

Antes de morrer, a mãe de Eduardo (que é a arte de fechar os olhos) diz-lhe: “Tenta não ficar sozinho.” Eloy de la Iglesia diz o mesmo: “A primeira coisa que o homossexual sente quando chega a uma certa idade é a sensação de vazio, aquele vazio tradicionalmente preenchido pela família e pela procriação.” Como encher essa solidão? Num momento de lucidez e de cegueira, bêbado daquele rapaz incorruptível, Eduardo encontra uma solução: “Gostava de formar uma espécie de família” (há tanto de fracasso como de utopia nessa imprecisão). Raúl (duríssimo) responde-lhe: antes compravas sexo, agora queres comprar tudo o resto. Será possível pensar a família, ou a coabitação, fora das leis do dinheiro? E das do Estado? De repente, o filme parece falar de amor: a tal coisa sem nome. Mas, para estes homossexuais, o amor é inconcebível (a relação de Eduardo e Raúl é um bom exemplo: se ao menos o amor existisse). De la Iglesia pergunta se a mudança se faz da lei para a vida (como defende Raúl) ou da vida para a lei (como defende Eduardo). (Talvez as duas?)

Quando parece ter voltado ao início, o filme abre (radicalmente) a possibilidade de um final feliz. Mas qual? Ainda o filme está na gaveta da censura e Eloy de la Iglesia lança um repto: “Peço que de agora em diante todos os políticos de esquerda (…) não se esqueçam destes problemas. Que dêem uma resposta muito concreta: um Estado democrático tem a obrigação não só de respeitar, mas também de garantir a qualquer cidadão a livre relação sexual. Em suma, qualquer cidadão tem de ser livre desde que se levante até que se deite, deite-se com quem se deitar.”

Ricardo Braun

Ricardo Braun graduated from UCP with a degree in Sound and Image, before working as dramaturgical and staging assistant to Nuno Cardoso, Rogério de Carvalho and João Pedro Vaz. In 2012, he founded OTTO and co-staged Katzelmacher, based on the play and film by R. W. Fassbinder. He led the amateur company Ao Cabo Theatre, directing them in plays based on the writing of Jean Anouilh and Ben Jonson/Stefan Zweig. He has also translated the work of Marius von Mayenburg, Lars Norén and Ödön von Horváth. Currently, he lectures in dramaturgy at Balleteatro and is a bookseller at Livraria Aberta.

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