Ainda o cinema era mudo e já o telefone tocava em vários filmes. Mais do que um simples adereço ou ícone da modernidade, este aparelho — tal como acontecera na literatura e no teatro — teve grandes implicações no campo do cinema. Se a montagem paralela já sugeria, ao olhar do espectador, a simultaneidade de acções em espaços distintos, a linha telefónica veio permitir que personagens distantes interagissem, sincronizadas no tempo. É assim que, em Suspense (Lois Weber e Phillips Smalley, 1913), a mulher em apuros liga ao marido, retido no escritório. Ambos partilham a mesma situação, mas separados pelo espaço. Nessa distância, nesse intervalo entre saber e não poder agir, instala o suspense — um suspense que se tornaria muito eficaz no cinema. Décadas mais tarde, Scream (Wes Craven, 1996) reutilizaria o mesmo dispositivo, mas invertendo-lhe a função: já não meio de socorro, mas de ameaça. Do silêncio de Suspense ao grito de Scream, o telefone manteve-se no centro da cena, catalisador de pânico e terror.
E se a natureza incorpórea da voz serviu para desencadear o medo, o telefone tornou-se igualmente um mecanismo para explorar a relação entre som, imagem e narrativa, introduzindo o fora de campo em campo. É nesse território que se situam filmes como Intercepted (Oksana Karpovych, 2024) ou Le navire Night (Marguerite Duras, 1979). No primeiro, ouvimos chamadas de soldados russos para casa, sobrepostas a imagens da vida civil ucraniana, interrompida pela guerra — um confronto entre banalidade doméstica e devastação. No segundo, Duras prolonga a sua reflexão sobre o desfasamento entre palavra e imagem, acompanhando dois desconhecidos — ela, doente e reclusa; ele, insone e distante — que usam linhas clandestinas, instaladas durante a ocupação alemã, para resistir ao vazio da vida moderna.
Ao articular tempo e espaço, corpo e voz, o telefone permitiu também interrogar a intimidade e o engano. Em Uma Voz na Noite (Solveig Nordlund, 1994), dois estranhos descobrem, na fragilidade do anonimato, um instante improvável de proximidade. Em Pillow Talk (Michael Gordon, 1959), comédia romântica inspirada nas party lines — sistema telefónico do pós-guerra em que várias casas partilhavam o mesmo número —, Rock Hudson aproveita a invisibilidade telefónica para assumir outra identidade e seduzir a vizinha Doris Day. Já em Tomorrow Everything Will Be Alright (Akram Zaatari, 2010), um reencontro com um ex-amante é encenado através de mensagens instantâneas, linguagem da era digital, mas redigidas numa máquina de escrever. Esse gesto anacrónico devolve uma intensidade nostálgica ao que seria, de outro modo, uma efémera conversa de engate online.
Se nestes filmes o telefone serve sobretudo para assustar, ligar e desligar o som da imagem e as personagens entre si, Dušan Makavejev, em Love Affair, or the Case of the Missing Switchboard Operator (1967), usa-o como metáfora de uma transição para a modernidade e respectivas transformações políticas e de género. Calcula-se que, em meados do século XX, nos EUA, uma em cada 13 mulheres fosse telefonista. Foi uma profissão omnipresente no cinema, sobretudo em Hollywood, onde a figura da operadora surgia frequentemente em comédias românticas. Makavejev subverte, porém, esse estereótipo, cruzando o discurso de um sexólogo com as dificuldades amorosas de uma jovem trabalhadora emancipada, transformando o telefone num símbolo das tensões entre emancipação individual e opressão social.
Se, em Makavejev, o telefone remete para a modernização laboral, em The World (Jia Zhangke, 2004) torna-se metáfora da globalização. Lançado um ano antes de mais de metade da população mundial passar a viver em cidades, o filme retrata uma China em mutação, encenada num parque temático onde migrantes rurais desempenham diariamente a promessa ilusória de mobilidade. As SMS animadas que surgem no ecrã condensam desejos e sonhos, lembrando que as mensagens circulam com mais facilidade do que os corpos precários que as enviam. Numa das cenas finais, um empresário exibe o seu telemóvel com câmara fotográfica, prenúncio de uma revolução tecnológica que transformaria tanto o mundo como os modos de fazer cinema.
Assim aconteceu em 2015, quando Sean Baker, usando três iPhone 5 (um deles hoje exposto no Academy Museum of Motion Pictures), filmou Tangerine, consagrando o “filme de telemóvel” como estética legítima e, acima de tudo, como gesto político: corpos e narrativas marginais são trazidos para o centro da cena. Esse potencial prolonga-se em The Pixelated Revolution (Rabih Mroué, 2012) e The Uprising (Peter Snowdon, 2013), onde a câmara é tratada como extensão do corpo (num caso do braço, no outro do olho), convertendo-se em arma de resistência.
Enquanto Mroué e Snowdon reivindicam uma “resolução suficiente” para fixar os rostos dos opressores, Alexandre Koberidze, em Let the Summer Never Come Again (2017), leva a opção contrária ao limite: a ausência de definição, dramatizada até à abstracção. Filmado com um modesto Sony Ericsson W595, o filme demonstra que a precariedade técnica pode engendrar uma inesperada alquimia poética: o ruído digital da imagem e a mobilidade da câmara abrem espaço a um cinema de assombro, em que cada plano oscila entre observação e devaneio. Não menos intrigante, embora por outra via, é No Place for Fools (Oleg Mavromatti, 2014). Montado a partir do vlog do protagonista, começa como retrato de Sergey Astakhov — um homem gay que, depois de uma terapia de conversão, se torna num activista ortodoxo pró-regime —, mas rapidamente resvala para um surpreendente jogo de contradições que, mais do que fixar a singularidade de uma figura, é um ensaio mordaz sobre as ambiguidades e paradoxos da Rússia contemporânea.
O programa é concluído com American Reflexxx (Alli Coates, 2015) e Bad Luck Banging or Loony Porn (Radu Jude, 2021), obras que expõem o reverso mais sombrio desta arma que todos transportamos no bolso. No primeiro, uma mulher sem rosto é abalroada pela multidão por destoar da norma; no segundo, uma professora vê-se condenada pela exposição pública de um vídeo íntimo cuja publicação não consentiu.
Quase 150 anos depois de Alexander Graham Bell ter pronunciado a célebre frase “Mr. Watson, come here, I want to see you” — palavras que mudaram o mundo e sem as quais não haveria “E.T. phone home” —, e precisamente, no ano em que o iPhone atinge a maioridade, Quando o Telefone Toca propõe um jogo de linhas cruzadas entre telefones analógicos, dispositivos digitais e cinema, para ouvir o modo como o passado e o presente ainda conversam.
Diogo Costa Amarante
Diogo Costa Amarante é realizador e professor na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto. Estudou Cinema na ESCAC (Catalunha) e concluiu um MFA em Realização na NYU Tisch School of the Arts, como bolseiro Fulbright e Gulbenkian. Realizou várias curtas-metragens premiadas internacionalmente, incluindo Jumate / Jumate (2008), Em Janeiro, Talvez (2009), Down Here (2011), As Rosas Brancas (2013), Cidade Pequena (Urso de Ouro, Festival de Berlim, 2017) e Luz de Presença (Melhor Curta, Festival du Nouveau Cinéma de Montreal, Canadá, 2021). Em 2024, estreou a sua primeira longa-metragem, Estamos no Ar, no Festival de Roterdão.
Inês Sapeta Dias
Inês Sapeta Dias tem trabalhado entre a investigação, a realização e a programação de cinema. Organiza programas de cinema desde 2004, primeiro na Filmoteca de Catalunya (Barcelona), depois na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa, e atualmente integra o Departamento de Exposição Permanente da Cinemateca Portuguesa. Escreveu uma tese sobre a história da programação e publicou livros e artigos sobre problemáticas da estética e história do cinema. Realizou Retrato de Inverno de Uma Paisagem Ardida (2008, 16mm, 40', ICA/RTP), A Casa É a Ruína de Uma Casa (em finalização, 16mm, 30', Gulbenkian/Governo dos Açores) e está a corealizar a série Atlas de Um Cinema Amador (ICA/RTP).
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