Zidane, un portrait du 21e siècle
Alexandra João Martins
13 de Junho de 2024

Zidane e a fenomenologia do futebol


Pasolini ou Cruyff, Camus ou Zidane: dizem, os detractores do futebol, que são apenas vinte e dois homens em busca de uma bola. Será isso, e não é pouco. E se dois artistas contemporâneos, Philippe Parreno e Douglas Gordon, se decidem a fazer um filme sobre Zizou é porque há uma fenomenologia da experiência estética que se confunde com a da experiência desportiva. Ao fazer incidir 17 câmaras sobre o corpo de Zidane, isto é, de um único jogador, ao longo de 93 minutos, Parreno e Gordon demonstram uma evidência: a solitude inabalável de cada um daqueles vinte e dois homens. Mas que solitude é essa?


Qualquer um que já tenha praticado futebol, sobretudo em terrenos mais alargados, sabe que o que se vê é pouco, é desfocado e acentrado (onde sobressai a visão periférica por defeito) e o que se ouve é também difuso: não há imagem definida do terreno de jogo e, como lembra Zidane, «[m]y memories of events and games are fragmented». É o movimento constante — até mais do que a posição da bola, praticamente sempre em fora-de-campo no filme — que define a prática e, desse modo, tudo o resto aparece como sombra ou espectro. Não há sequer consciência de si enquanto sujeito, mas um corpo que percepciona e se percepciona, a partir de dentro, que se move e age numa relação global com outros corpos. Há, aliás, um excerto de um documentário sobre Cristiano Ronaldo no qual, às escuras, o jogador recebe um cruzamento e cabeceia para a baliza, numa clara demonstração da intuição promovida pela prática. O jogador pressente ou pre-vê a chegada da bola tendo em consideração, em primeira instância, o ponto de partida – no caso, uma bola parada; em segunda instância, a trajectória e respectiva duração, caso seja batida com muita ou pouca intensidade, com o pé esquerdo ou com o pé direito; e, em última instância, a sua posição no terreno e o movimento que o jogador precisa de executar. E os falhanços evidentes que ocorrem regularmente neste desporto demonstram o contrário: isto é, que a visão puramente óptica não é o sentido dominante na prática futebolística.


Como numa dança improvisada, há uma previsão dos acontecimentos baseada na percepção do movimento corporal — do próprio e dos demais , como quando se pressente que alguém nos persegue sem que o tenhamos visto. Assim, quando um jogador finta outro passando a bola pelas pernas entreabertas, raramente esse jogador tem uma visão objectiva de que as pernas do seu adversário se encontram afastadas. Há, por um lado, um vislumbre, e, por outro lado, uma previsão. Nas poucas vezes em que se concertam, a finta acontece: magia ou ilusão — «[m]agic is sometimes close to nothing at all». Assim se desfaz, como aconteceu há mais de um século, de forma equivalente, na representação pictórica, o principal chavão do futebol moderno, atribuído quase sempre a centro-campistas, designadamente a Zidane — a visão de jogo. O filme de Parreno e Gordon é proverbial nessa desconstrução: só se vê objectivamente quando os planos se vergam à doutrina da tele-estética, aquela que permite olhar o jogo com a distância necessária à táctica ou estratégia. Não é acaso que os planos gerais sejam os que melhor servem não só as audiências mas a administração futebolística. Aliás, quando esses planos tomam lugar no filme de Parreno/Gordon, tornam-no num lugar de silêncio — lugar da óptica pura —, ao invés do barulho ensurdecedor do estádio.


Mas Parreno e Gordon não se colocam nos pés de Zidane, isto é, não fazem dele a personagem principal de que resultariam planos subjetivos. Não, não vemos como Zidane. Vemos como exterioridade, uma outra imagem ou corpo, qual 12.º jogador que minuciosamente atenta ao andar semi-arqueado e arrastado de Zidane, ao seu porte entroncado e recto, ao seu rosto opaco que não deixa nada a adivinhar porque não há nada para adivinhar. São os gestos apreendidos, pré-reflexivos, de quem fez da bola, mas também do campo e do corpo colectivo, uma extensão do corpo próprio, que se auto-expressam para traçar uma assinatura. E não há jogador que dite o ritmo de jogo sem que seja tomado por ele, como, aliás, insinua Zizou ao afirmar que «[t]he game, the event, is not necessarily experienced or remembered in ‘real time’». É o ritmo próprio da experiência que dita a duração, e não o inverso. E a sensação é ditada pelo corpo, ofegante e extenuado, quando o batimento cardíaco se alastra à nuca e a única certeza que se tem é a de que se está vivo.


A obra de Parreno/Gordon é certamente um retrato do jogador no século XXI, mas é também um retrato do século XXI, no sentido em que explora criticamente as expressões formais da industrialização da imagem mediática, cujos princípios basilares remontam ao Renascimento, e em que sugere a perversão da globalização, de um fluxo de imagens que permite aglutinar o lançamento de um novo videojogo e um ataque bombista no Iraque. E uma criança que, fugindo à guerra, enverga a camisola de Zidane.


A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.

Alexandra João Martins

Licenciada em Ciências da Comunicação, mestre em Estudos Artísticos pela Universidade do Porto, e doutoranda em Estudos Artísticos na FCSH-Universidade Nova de Lisboa, tendo sido bolseira da FCT. Escreveu para diversas publicações. Colaborou e integrou os comités de seleção dos festivais Curtas Vila do Conde e Porto/Post/Doc. Em 2017, foi selecionada para o Talent Press Rio e, em 2018, comissariou a exposição Como o Sol/Como a Noite, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito da retrospetiva dedicada a António Reis e Margarida Cordeiro no Porto/Post/Doc.

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