Programação

Programação

Cinema ao Redor

Cinema ao Redor

FS Wild at Heart FS Wild at Heart FS Wild at Heart FS Wild at Heart

Limpar filtros

FS Wild at Heart

Filtrar

Wild at Heart

Victor Guimarães
20 de Julho de 2025

Acidentes na beira da estrada ou um incêndio em cada cigarro

 

Já na primeira sequência, todas as cartas estão na mesa. Ao som de um popular standard de jazz, da era das big bands, a câmera move-se vertiginosamente do teto de um salão de baile até o encontro entre o Sailor, de Nicholas Cage, e a Lula, de Laura Dern, na escadaria. Sem maiores introduções, uma faca brilha na noite, Cage espanca o algoz até matá-lo e Dern berra com toda a força dos pulmões, enquanto notas de heavy metal invadem a trilha sonora e o sangue jorra pelos degraus. Logo o casal partirá num carro descapotável ao estilo de Bonnie e Clyde, atravessando os estados do sul, enquanto a tresloucada mãe da moça (uma soberba Diane Ladd) trata de impedir o amour fou, acionando outros inumeráveis perseguidores. A fuga desembestada oferece uma carcaça narrativa, mas tudo o que importa aqui são os acidentes à beira da estrada: a coleção de linhas paralelas desatadas por David Lynch, o inventário de personagens e situações cada vez mais insólitas, o arcabouço das sensibilidades dissonantes — entre a coolness de Cage e o desbordamento de Dern —, a extravagância sempre nova dos gestos. Há sempre um papel de parede que grita, uma cor que sobra, um penteado que escapa, uma nota insuspeita a perfurar o tímpano.

 

This whole world is wild at heart and weird on top”, diz Lula a certa altura, como se oferecesse uma chave de leitura para todo o cinema de Lynch — e para este filme em particular. “Wild at Heart”: este cinema se alimenta das entranhas desse lugar chamado Estados Unidos da América; de suas criaturas mais indômitas, de suas energias mórbidas e das paixões sempre a ponto de explodir. A sexualidade exacerbada, a violência brutal, a música sempre no volume máximo (ou tudo ao mesmo tempo, como na antológica sequência em que a Juana de Grace Zabrinskie grita um “fuck me now, Reggie!” enquanto o capanga comete um assassinato). “Weird on top”: como se não bastasse sua natureza eminentemente estranha, a superfície do filme mobiliza um arsenal de formas exorbitantes, dos ângulos insólitos às atuações cabotinas, dos ralentis súbitos às mudanças bruscas de tom, da trilha sonora onipresente às irrupções repentinas do trauma em forma de memória ou miragem.

 

Se Wild at Heart é “enquadrável em quase todos os géneros” — do noir ao musical, do horror à comédia —, e é feito de “visitações a todos eles”, como escreveu João Bénard da Costa, isso se deve ao fato de que o maximalismo de Lynch talvez nunca tenha estado em melhor forma, talvez nunca tão deliciosamente desequilibrado entre a releitura da veia popular do grande cinema estadunidense e sua torção histriônica. Lynch se apropria de um imenso repertório de signos reconhecíveis — motéis de beira de estrada, Elvis, The Wizard of Oz, assaltos a bancos — e os sobrepõe no seu panteão de esquisitices. Como ouvir “Love me Tender” novamente no cinema, se não vinda da boca de um homicida apaixonado, vestindo um casaco de pele de cobra, pairando sobre os automóveis sobre os quais acaba de saltar para encontrar sua amada pela última vez?

 

Sempre que uma figura nova adentra a cena, já é de se esperar que algum detalhe em sua presença extravasará suas funções narrativas para instalar um tom surpreendente, entre a febre e a derrisão. Wild at Heart é um filme que se move sempre adiante, como na melhor tradição norte-americana, mas é constantemente acossado por uma lateralidade: há sempre uma sombra a mais no plano, um brilho que salta aos olhos, uma voz que se altera para nos puxar o tapete da percepção. Há sempre um acidente a mais na beira da estrada. E se está recheado de enigmas insondáveis como sempre em Lynch, o filme não tem o caráter soturno de um Lost Highway (1997) ou a introspecção de um Inland Empire (2006). O mistério de Wild at Heart acontece a céu aberto: solar, superficial, pirotécnico, como um cigarro aceso em plano de detalhe.

 

Aqui fuma-se muito, o tempo todo, Marlboro e Kool, Viceroys e Merits, desde os quatro anos de idade até se morrer de câncer, talvez como em nenhum outro filme na história do cinema. Todos os personagens estão sempre prontos a acender um cigarro (ou dois ao mesmo tempo, como Sailor). E se a chama do incêndio portátil do cigarro se alastra pela matéria narrativa e visual do filme (o eterno retorno da queima do corpo do pai, as labaredas que marcam a transição entre um plano e outro) é porque o cigarro é a alegoria perfeita para esse cinema inflamado. Se a morte precoce é o preço a pagar por tantos cigarros acesos, que a chama de cada um deles traga consigo a beleza e o terror de uma conflagração.

Victor Guimarães
Crítico de cinema, programador e professor. Doutorado em Comunicação Social pela UFMG, com passagem pela Université Sorbonne-Nouvelle (Paris 3). Colaborou com publicações como Cinética, Con Los Ojos Abiertos, Senses of Cinema, Desistfilm, Outskirts, Documentary Magazine, La Vida Útil, La Furia Umana e Cahiers du Cinéma. Foi programador no forumdoc.bh, na Mostra de Tiradentes e na Woche der Kritik de Berlim, e realizou programas especiais para espaços como XCèntric (Barcelona), Essay Film Festival (Londres) e Cinemateca de Bogotá. Atualmente, é programador do FICValdivia (Chile) e diretor artístico do FENDA (Brasil).

Batalha Centro de Cinema

Praça da Batalha, 47
4000-101 Porto
+351 225 073 308

batalha@agoraporto.pt

A enviar...

O formulário contém erros, verifique os valores.

O formulário foi enviado com sucesso.

O seu contacto já está inscrito! Se quiser editar os seus dados, veja o email que lhe enviámos.

©2025 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits by LOBA

01010101
02020202
03030303
04040404
04040404
batalhacentrodecinema.pt desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile