What Time is it There?
Genevieve Yue
10 de Fevereiro de 2024

Lado a lado em What Time Is It There?


A montagem paralela, uma técnica que alterna entre dois ou mais cenários distintos para fazer convergir um sentimento de simultaneidade, foi popularizada por D. W. Griffith e tornou-se uma prática comum na montagem para cinema. Por vezes, chamada de montagem alternada (cross-cutting), foi particularmente útil para criar suspense num curto intervalo de tempo: Chegaria o herói a tempo? Quem venceria a corrida? A montagem alternada é o equivalente cinematográfico ao termo literário “entretanto” que, como argumenta Benedict Anderson, permite a membros de uma comunidade manterem um sentimento de coexistência sem interação real. “Entretanto” une pessoas distantes através de um tempo partilhado.


Em cinema, a montagem paralela aproxima os acontecimentos, juntando-os numa eventual e única sequência final. 500 anos depois de Griffith, What Time Is It There?, de Tsai Ming-Liang, investiga o emaranhado entre a montagem alternada e a função unificadora do “entretanto”. Hsiao-Kang (Lee Kang-Sheng), um comercial de relógios de Taipei, vende um relógio a Shiang-Chyi (Chen Shiang-Chyi), que está de partida para Paris no dia seguinte. Ela quer o relógio que ele usa no próprio pulso. Ele recusa, dizendo que lhe trará azar porque o seu pai faleceu recentemente. Mas ela insiste e vemo-la de seguida deitada, acordada, numa cama de hotel com jetlag e sem conseguir dormir. Entretanto, Hsiao-Kang começou a acertar os relógios para o horário de Paris: neste caso, os relógios são o relógio na casa que partilha com a sua mãe e um relógio de um cinema degradado, o mesmo que mais tarde aparece em Goodbye, Dragon Inn (2003). O filme alterna entre estas duas personagens e as duas cidades onde dormem, comem, iniciam ou recusam avanços sexuais, e dormem novamente. Não se irão encontrar de novo, pelo menos não neste filme.


O título sugere uma divisão entre “lá” e “aqui”: Paris e Taipei, bem como a vida após a morte e o mundo dos vivos. O pai de Hsiao-Kang (Miao Tien) é a primeira e a última pessoa a ser vista no ecrã. Primeiro, no apartamento da sua família, chama o seu filho para jantar; ninguém vem. Na conclusão do filme, aparece no Jardim das Tulherias, em Paris, onde Shiang-Chyi adormeceu numa cadeira. Mais ninguém está por perto, nem as crianças que antes roubaram a sua mala e a atiraram para a fonte. Poderá ele ser um fantasma? Em Taipei, a mãe de Hsiao-Kang vê o relógio alterado na sua casa e afirma que é um sinal do seu falecido marido. Começa a cozinhar jantares à meia-noite, como se o mundo dos mortos estivesse no horário de Paris, apesar dos protestos do filho. Mas se o filho protesta, por que motivo tem ele medo de ir ao quarto de banho a meio da noite?


Apesar de todos os “entretantos” serem possibilidades em aberto, o filme também se fecha em torno de cada personagem. Hsiao-Kang e Shiang-Chyi não só se encontram fisicamente distantes daqueles que os rodeiam, também se encontram temporalmente separados. Como disse Giuliana Bruno sobre What Time Is It There?, “todas as pessoas… estão condenadas a habitar o seu tempo, enquanto sonham em partilhá-lo”. Para além do jetlag, Shiang-Chyi está separada pela sua língua, aparência, etnicidade e velocidade.


Um momento revelador ocorre quando permanece num tapete rolante no metro de Paris enquanto os outros passageiros passam por ela, apressados. A cena lembra a série Walker (2012–2022), de Tsai, na qual Lee, em vestes de monge, caminha de forma extremamente lenta através de diferentes cidades, muitas vezes levando vários segundos apenas para levantar um pé. A montagem alternada pode alcançar a simultaneidade, mas nos filmes de Tsai a unidade é evitada.


Hsiao-Kang vai a um vendedor de DVDs à procura de filmes sobre Paris e volta para casa com o filme Les quatre cents coups, o preferido do próprio Tsai. Enquanto vê o jovem Antoine Doinel, interpretado por Jean-Pierre Léaud, ícone da Nouvelle Vague, andar às voltas numa atração de feira e a roubar garrafas de leite, Shiang-Chyi encontra Léaud na vida real, no cemitério do Père Lachaise. O que poderia, noutro filme, ser um momento de causalidade de acontecimentos relacionados, aqui é um de distanciamento irónico. Agora muito mais velho, Léaud tenta seduzir Shiang-Chyi, como os muitos homens na cidade que ficam encantados com ela. O encontro com Léaud evidencia a experiência de alienação que Shiang-Chyi vive na cidade, onde qualquer pessoa que fale com ela, até um erudito da história do cinema, está apenas a tentar fodê-la.


Num certo sentido, Hsiao-Kang é Taipei e Shiang-Chyi é Paris, ou pelo menos é assim que cada um vê o outro. Mas as substituições não se sustentam. Estas metrópoles, de outra forma vibrantes, tornam-se meros palcos para a expressão da solidão e da saudade de cada personagem. Ao longo do tempo, o filme sugere uma espécie de conexão, ainda que indireta ou ténue. Talvez seja a maldição de que falava Hsiao-Ka, a solidão de um homem em sofrimento passada para outro. O cinema também é assim, uma intimidade acidental entre os que se sentam no escuro com os rostos vagamente iluminados pelo ecrã. Vemos pessoas que achamos que conhecemos —quimeras, todas, mas mesmo assim, às vezes, entram nos nossos sonhos. Poucos realizadores são tão cinéfilos como Tsai e poucos compreendem tão profundamente como a solidão do espectador pode ser um sinal do seu desejo. Isto também se aplica às suas personagens, sobretudo atores regulares como Lee e Chen. Estejam particularmente atentos quando parece que estes não estão a fazer nada, mesmo a dormir, porque é aí que estão mais próximos daqueles que amam.

Genevieve Yue

Genevieve Yue é professora associada de Cultura e Media e directora do programa Screen Studies no Eugene Lang College, The New School. É coeditora da série Cutaways na Fordham University Press, e os seus ensaios e críticas foram publicadas na Reverse Shot, October, Grey Room, The Times Literary Supplement, Film Comment e Film Quarterly. O seu livro Girl Head: Feminism and Film Materiality foi publicado em 2020 pela Fordham University Press.

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