West Indies, les nègres marrons de la liberté
Ana Naomi de Sousa
16 de Março de 2024

“A arte não é um espelho que reflete a realidade, mas sim um martelo com o qual a moldamos.” — Bertolt Brecht


Med Hondo nasceu em Marrocos em 1935. Filho de pais mauritanos e senegalenses, tornou-se realizador em França com obras filmadas na Tunísia, Burkina Faso e Mauritânia financiadas através do seu trabalho em dobragem, para francês, de atores de Hollywood como Eddie Murphy e Danny Glover. Enquanto realizador, ator e profissional de dobragens, desobedeceu intencionalmente às forças potencialmente limitadoras das fronteiras geográficas, das formas cinematográficas e da linguagem, reinventando o seu cinema ferozmente político em cada obra da sua filmografia, de uma forma que ninguém estaria melhor posicionado na história para o fazer, e que lembra as palavras de Frantz Fanon, uma das suas influências mais importantes: “No mundo em que viajo, estou continuamente a criar-me.”


Com a sua encenação teatral, narrativa oral, música e dança, West Indies, les nègres marrons de la liberté foi muitas vezes mal-interpretado como uma homenagem aos musicais norte-americanos, mas a intenção de Hondo era, na verdade, a oposta:


“Era uma questão de denúncia dos modelos, como o musical, que aos olhos do público se referem ao cinema americano... quero mostrar... outra visão, demonstrar que, até com meios escassos mas com uma ideologia suficientemente clara, não ficamos deslumbrados com nenhum filme americano... é uma questão de desamarrar o conceito de musical da sua imagem de marca americana, para demonstrar que cada povo na Terra tem a sua própria comédia musical, a sua própria tragédia musical e o seu próprio pensamento moldado pela sua história.” 1


Este tipo de experimentação anti-imperial, subversiva e determinada não começou nem terminou com West Indies. No início da sua carreira artística, nos anos 60, Hondo cofundou (com Robert Liensol, ator guadalupense que aparece em West Indies) a companhia de teatro parisiense Griots-Shango, trabalhando com atores africanos e encenando peças de pessoas como: o intelectual martinicano Aimé Césaire; René Depestre, poeta do Haiti; Guy Menga, dramaturgo congolês; e o escritor Daniel Boukman, o autor de West Indies. Med Hondo foi influenciado pelo cânone político, teatral e poético da Negritude, o movimento literário francófono de consciência negra dos anos 30 associado a movimentos anticoloniais e independentes transversais às colónias francesas — apesar de Hondo mais tarde se ter tornado crítico dos seus defensores mais famosos, entre eles Césaire e Léopold Senghor, poeta e mais tarde presidente do Senegal, que sentia terem ficado aquém dos seus compromissos após a independência.


Os filmes que Med Hondo passou a fazer, e em particular as suas grandes obras Soleil Ô, Sarraounia e West Indies, não são apenas marcos do cinema africano, mas também intensas denúncias do legado colonial francês que transbordam com raiva e ironia, e que recusam ceder ao elitismo cultural que persiste, aos valores assimilacionistas do colonialismo francês e ao seu suposto mono-culturalismo. São também narrativas sentidas e profundamente emotivas sobre a resistência ao colonialismo ao longo da história e atravessando várias geografias, com subcorrentes fortes de Pan-Africanismo e Marxismo, e a influência palpável do filósofo político Frantz Fanon.


A contribuição de Hondo para um cinema pan-africano foi imensa; desempenhou um papel importante no FESPACO, o festival de cinema e de televisão pan-africano de Ouagadougou, no Burkina Faso, onde fundou o Comité Africain des Cinéastes, através do qual publicou o texto de referência What is Cinema for Us, insistindo para que os meios de produção e distribuição árabes e africanos libertassem o seu cinema do jugo imperialista do cinema euro-americano. Muitas vezes referido como um dos fundadores do cinema africano, como realizador militante, e como uma figura incontornável do Terceiro Cinema, Med Hondo questionou os muitos rótulos que lhe foram atribuídos e procurou uma compreensão ampla e crítica das experiências históricas africanas, ancorada sempre na diversidade de etnicidades, línguas e religiões dentro delas, no sentido de resistir a um afunilamento que resultasse em definições essencialistas.


Passado a bordo de um navio com três pisos e filmado, de forma propositada, numa antiga fábrica da Citroën em Paris, West Indies conta uma história longa e dolorosa que entrelaça as histórias da escravatura, o colonialismo de plantação, o anticolonialismo, a luta pelo poder na pós-independência, e o legado persistente do colonialismo na metrópole pós-colonial. Aqui, Hondo aponta a sua arma aos colonizadores franceses, e fala de uma experiência franco-crioula particular, mas as acusações históricas que faz poderiam facilmente ser aplicadas aos colonizadores portugueses, que escravizaram e extraíram lucros das colónias portuguesas e da sua população até ao final do século XX. Ver este filme hoje em Portugal é uma lembrança poderosa de uma história recente, profundamente violenta e injusta, num país que, por certo, resiste a confrontar-se com ela — mas também do poder do cinema africano, no seu sentido mais lato, de providenciar um martelo que molde o novo mundo.


1 Marcel Martin, “Brève rencontre avec Med Hondo”, 1979, traduzido do francês para o inglês por John Barrett, 2018 [tradução para português feita a partir do inglês]. Reproduzido com a permissão de Yukiko Martin, em 1970—2018 Interviews with Med Hondo A Cinema on the Run/Archive Books

Ana Naomi de Sousa

Ana Naomi de Sousa é realizadora e jornalista. Realizou os documentários The Architecture of Violence, Angola – Birth of a Movement, Guerrilla Architect e Hacking Madrid — todos eles exibidos na Al Jazeera English.Colaborou com a agência Forensic Architecture, em Saydnaya, e num documentário interativo sobre uma prisão militar síria para Amnistia Internacional. Colaborou com Decolonizing Architecture em vários filmes e instalações. Escreve sobre a política pós–colonial, espacial e cultural para diversas plataformas, incluindo The Guardian, Al Jazeera e The Funambulist.

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