Fantasmas e segredos
Revejo Volver e penso na relação entre os fantasmas e os segredos. Dou comigo a pensar que são os fantasmas que acordam os segredos, que são estes que os trazem à vida.
Das outras vezes que vi o filme, pensei que Carmen Maura não tinha chegado a morrer. Desta vez, porém, Carmen Maura pareceu-me regressada do mundo dos mortos, fantasma propriamente. E o filme pareceu-me menos cómico e mais sério: que teria aquela mãe vindo fazer à vida de novo? O que é, e sobretudo, como se mostra, um fantasma? Exactamente como se mostra uma pessoa, ou de outro modo, mais enigmático?
Então Volver parece-me uma tentativa de responder a esta pergunta importante. Como acordar e mostrar um fantasma? O que temos nós humanos de fazer à nossa vida para os acordarmos?
Vêm, como Carmen Maura, para que os ajudemos, ou despertam para nos ajudarem, despertam quando nos vêem aflitos? Volver deixa a resposta em aberto, trazendo à vida o fantasma de uma mãe quando a filha se vê aflita, porque o momento em que Raimunda se sente em apuros coincide com o momento em que a mãe de Raimunda se sente em apuros: alguns espíritos não aguentam a aflição daqueles que amaram.
Volver alimenta-se da coincidência entre a necessidade de ambas, mãe e filha, filha e fantasma, a coincidência entre uma precisar de rever a outra e pedir-lhe perdão e a outra de encontrar o consolo da mãe, buscado e negado a vida inteira: alimenta-se da coincidência entre as necessidades dos vivos e dos mortos, do momento em que estas se encontram. Os fantasmas acordam assim, nesses momentos, revela-nos Volver, quando aquilo de que os vivos precisam é aquilo que os mortos têm para lhes dar e vice-versa.
Filme de mães e filhas, daquilo que as mães estão dispostas a fazer pelas filhas, a agonia que sentem, quando lhes faltam, Volver também revela que todas as mães aspiram à condição de fantasmas: uma vez que, começando antes de nós começarmos propriamente, as mães não findam. É essa mãe perene, vinda do mundo dos mortos, que Carmen Maura interpreta. Voltou para pedir perdão ou para ser perdoada? Fantasma que se parece mesmo com uma pessoa, com necessidades das pessoas (precisa de pintar e cortar o cabelo, por exemplo, o que abona a favor da coincidência entre desejos e possibilidades que referi). Tão de carne e osso que são quase espíritos, as mulheres de Volver cruzam campo e cidade, são de perto e de longe, do vento e do silêncio. Todas elas escondem alguma coisa, são corpos de segredo. Escondem para se protegerem umas às outras e para se protegerem dos homens.
“Mãe” é aqui outro nome para a cegueira, para tudo quanto somos capazes de não ver por muito tempo, para o que somos capazes de fazer por amor. E nome para quem se é depois de as escamas nos caírem dos olhos e vermos o que não tínhamos visto.
Então a paródia, as facas, os decotes e os pimentos vermelhos, o sangue, os penteados, as evocações do cinema italiano, parecem-me menos decisivas em Volver do que o subtil diálogo entre mortos e vivos, de que depende admitirmos que Carmen Maura acordou do mundo dos mortos para ajudar Raimunda, porque Raimunda era quem lhe podia dar descanso.
Djaimilia Pereira de Almeida
Djaimilia Pereira de Almeida é uma artista portuguesa. É autora de 14 livros, entre os quais os romances Esse Cabelo (2015), Luanda, Lisboa, Paraíso (2018), As Telefones (2020), Três Histórias de Esquecimento (2021) e Ferry (2022). Os seus livros e ensaios receberam o Prémio Oceanos, o Prémio de Ensaísmo Serrote e o Prémio Literário Fundação Inês de Castro, entre outros. Ensinou literatura e filosofia na New York University (NYU). É consultora da Casa Civil do Presidente da República para os Direitos Humanos, Igualdade de Oportunidades e Não-Discriminação. A sua obra, traduzida em dez línguas, foi publicada na serrote, Granta, Folha de S. Paulo, ZUM e la Repubblica.
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