Vie privée
Rosa Maria Martelo
23 de Março de 2024

Depois de Zazie dans le métro (1960), que transpunha para o cinema o experimentalismo da narrativa homónima de Raymond Queneau, Louis Malle realizou o seu quarto filme, Vie privée (1962), com Brigitte Bardot (Jill) e Marcello Mastroianni (Fabio) nos papéis principais. É possível que tenha procurado na participação dos dois actores uma resposta para a fraca bilheteira de Zazie: Bardot era já uma estrela consumada e Mastroianni acabava de fazer sucesso em La dolce vita, de Fellini (1960). Louis Malle tencionava adaptar ao cinema uma peça de teatro de Noël Coward, mas as queixas recorrentes de Brigitte Bardot acerca do constante desrespeito da sua privacidade por parte dos paparazzi levaram rapidamente o realizador e o argumentista a mudarem as agulhas e criarem um enredo original para o filme, baseado na biografia da actriz. Deste modo, Louis Malle acabaria por filmar uma Brigitte Bardot representando-se em grande parte a ela própria. Mais tarde, não muito feliz com o resultado, confessou que, com Viva Maria! (1965), actriz e cineasta tinham superado uma certa insatisfação que Vie privée lhes deixara.


Hoje não é fácil imaginar (felizmente!) o que foi a perseguição mediática da actriz, cantora e dançarina Brigitte Bardot a partir do sucesso norte-americano de Et Dieu... créa la femme, de Roger Vadim. O filme estreara em França sem produzir grande efeito, em finais de 1956, mas teria um sucesso extraordinário nos Estados Unidos durante os dois anos seguintes. A ponto de se dizer que Bardot trouxera mais dinheiro para França com o filme do que a Renault com a venda de automóveis. Na versão norte-americana, o título do filme era mais longo e dava bem o tom da Bardot “sex symbol” que os franceses e o mundo inteiro iriam celebrar a partir de então (mas também execrar, algumas vezes com impensável violência): “And God created woman...but the devil invented Brigitte Bardot.”


Quando Louis Malle e o argumentista resolveram prestar atenção ao suplício em que se tornara a vida privada de Brigitte Bardot, já tinham acontecido situações de perseguição mediática tão graves quanto a de a actriz, grávida, não conseguir sair de casa para uma clínica e ser forçada a ter o filho no apartamento, preparado a correr para esse efeito. Na década de 60, o valor de uma fotografia da intimidade de Bardot era tal que os fotógrafos alugavam os andares nas imediações do apartamento da actriz, na esperança de a fotografarem através das janelas, e faziam piquetes na rua à saída do prédio em pleno inverno parisiense. Recorde-se que só em 1970 a França viria a aprovar legislação que impedia estas formas de assédio, sendo, de resto, o caso Bardot determinante para isso. Pouco depois da estreia de Vie privée, Godard escolheu a casa de Curzio Malaparte, isolada no alto de uma falésia, para filmar Le mépris (1963) na tentativa de preservar Brigitte dos paparazzi — coisa que, mesmo assim, se revelaria impossível.


No argumento de Vie privée são identificáveis vários pontos de contacto com a vida da própria Brigitte. Tal como a personagem de Louis Malle, Brigitte deixara a casa burguesa da sua família para estudar dança em Paris. E também ela se apaixonou muito cedo, no seu caso por Roger Vadim, o então aspirante a cineasta que a leva para o mundo do cinema, e que a família Bardot considerava um péssimo pretendente. É o próprio Louis Malle quem conta numa entrevista televisiva, aquando da estreia de Vie privée, que a cena em que Jill é insultada num elevador pela empregada de limpeza tem origem numa situação verídica que, segundo o realizador, tinha sido ainda mais violenta do que a do filme. De resto, essa é uma cena importante — Bardot falará várias vezes do facto de a situação real ter envolvido uma agressão com um garfo — porque acentua um aspecto que irá marcar o estrelato de B.B.: a agressividade que a sua manifesta indiferença por uma ideia de feminilidade recatada e sexualmente passiva podia desencadear. Brigitte Bardot não se limitou a encarnar o desejo e a sensualidade no cinema. Ela foi também, na vida real, uma mulher que sempre assumiu as suas muitas paixões e a sua preferência por relações amorosas livres de compromissos. Entre os finais dos anos 50 e os anos 60 e 70, a actriz afirma a liberdade sexual feminina de uma forma que os mais tradicionalistas viam como desavergonhada, ao mesmo tempo que outros (Simone de Beauvoir, desde logo) consideravam emancipatória e justa. E também esta mudança civilizacional em curso pode ser captada no filme de Louis Malle. Um filme frágil a alguns níveis, pouco convincente no seu enredo amoroso, dado que este perde energia face ao protagonismo da actriz biografada, mas interessante pela forma como nos permite perceber um mundo em mudança, pleno de contradições. Para dar apenas um exemplo: podemos, é certo, reconhecer a rebeldia de Jill, mas, paralelamente, surpreendemos na personagem uma ideia de feminilidade em que a mulher e a criança se cruzam, sugerindo incapacidade de escolha e decisão. Com efeito, ainda é esse estereótipo que sobressai quando Jill decide abandonar um filme em plena rodagem e ir ao encontro de Fabio, que encenava uma peça de teatro em Itália. Menos do que um gesto de paixão, o que o filme nos mostra é uma necessidade de orientação, um estereótipo de dependência: “Preciso de ver Fabio, tenho de falar com ele. Ele dir-me-á o que fazer”.

Rosa Maria Martelo

Ensaísta, investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e professora catedrática aposentada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutorada em Literatura Portuguesa, tem privilegiado o estudo da poesia portuguesa e das poéticas modernas e contemporâneas. No âmbito da Literatura Comparada e dos Estudos Interartes, estuda as relações intermediais e transmediais da poesia moderna e contemporânea com as artes visuais e o cinema. Publicou O Cinema da Poesia (2012), Devagar, a Poesia (2022) e Matérias Difusas, Poderosas Coisas (2022). Coorganizou a antologia Poemas com Cinema (2010) e organizou a Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa (2021).

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