Videodrome
Ana Naomi de Sousa
16 de Outubro de 2023

A Vídeo-autópsia de Videodrome, de David Cronenberg


Ao longo de quase toda a história das civilizações humanas, as entranhas dos corpos eram deixadas para os deuses; examinar demasiado para lá da superfície da pele parecia perigoso e violava tabus espirituais e morais profundamente enraizados. As primeiras dissecações só aconteceram por volta de 300 d.C., quando o médico alexandrino Herófilo iniciou o seu trabalho de abertura de animais e cadáveres humanos (e possivelmente alguns corpos vivos, também); o termo dado a este trabalho outrora proibido, na língua da antiga Grécia, era “autópsia”; que significava “ver-se a si mesmo”, “ver por si mesmo”, a “visão de si mesmo”. Séculos mais tarde, David Cronenberg, um cineasta profundamente subversivo e autodidata, cuja obra surgiu no Canadá nos anos 70, traz para o ecrã as suas próprias ideias especulativas e experimentais sobre ver-se a si mesmo e o interior do corpo, no seu clássico de 1983 Videodrome.


Um cineasta sem particular preocupação com tabus ou proibições, o OG do body horror, Cronenberg utiliza os efeitos especiais plásticos do seu tempo para virar os corpos do avesso no ecrã, investigando o seu fascínio pelos segredos escondidos nas profundezas da nossa carne, e obrigando-nos a olhar para eles em detalhe gráfico. Porque é que receamos tanto as coisas de que somos feitos? Qual é a parte que mais nos repulsa? Estas questões são colocadas em Videodrome, através de cenas extremas, como quando o protagonista Max Renn, um homem cisgénero, desenvolve uma grande abertura vaginal no estômago (subsequentemente penetrada pela sua mão, uma arma e uma cassete de vídeo). “Long live the new flesh” é a frase evasiva e mais conhecida que ecoa ao longo do filme, à medida que os corpos ficam infestados com pensamentos sombrios e tecnologias — são também as entranhas obscuras da mente humana que interessam a Cronenberg e Videodrome lida com as ambiguidades morais, depravações e perversões dos indivíduos, à medida que conspirações autoritaristas mais amplas se formam à sua volta. Max é um vendedor ambulante, sujo de “pornografia e violência hardcore de baixo orçamento”, na “CIVIC-TV, Canal 83”, cuja lógica comercial é “dar às pessoas algo que não conseguem encontrar em outro lado”. Nicky Brand, a sua amante, uma locutora de rádio, tem uma tara sadomasoquista que procura alimentar. No seguimento de um sinal codificado que a sua assistente captou através do satélite clandestino do canal, a busca de Max por uma forma extrema de entretenimento leva-o a perseguir um programa snuff chamado Videodrome, onde vê uma mulher seminua a ser torturada, espancada e asfixiada. Enquanto Max tenta adquirir o programa, Nicky procura tornar-se participante; rapidamente se torna óbvio que Max e Nick estão envolvidos em algo bastante mais sinistro e poderoso do que qualquer um deles.


Realizado menos de uma década após o advento dos vídeos caseiros, e ainda nos primórdios da comunicação de massas, Cronenberg aproveita ao máximo as teorias da conspiração e paranoia à volta das novas tecnologias dos anos 70, escrevendo sobre o impacto transformador do VHS e da televisão por satélite na produção de pornografia, numa altura em que abundavam lendas urbanas sobre cassetes snuff e pornógrafos assassinos. Videodrome orquestra medos em torno da violência, da transmissão, das mensagens subliminares, do controlo da mente, e da ameaça da fusão e mutação da tecnologia e dos humanos, para criar uma especulação horrenda na qual o pior da natureza humana e da tecnologia em evolução avançam pelo caminho do desejo em direção à morte inescapável.


Reproduzindo questões de ver e ser visto através de ecrãs de televisão e cassetes de vídeo, Videodrome é pontuado por frases impassíveis, aventurando-se pela teoria dos media e da filosofia da época, tais como “o ecrã televisivo tornou-se a retina do olho da mente”. A personagem do “profeta dos media”, o Professor Brian O’Blivion, é um pastiche de Marshall McLuhan, teórico canadiano dos media e “sumo sacerdote da cultura pop” (“o meio é a mensagem”), mas o filme também se alimenta das ideias do filósofo francês Jean Baudrillard, o “sumo sacerdote do pós-modernismo”, que trabalhou sobre a ideia de “simulacro” como representação de realidades que substituem o real à medida que proliferam, conduzindo a uma hiper-realidade em que o real e o simulado são indistinguíveis.


Cronenberg estabelece uma série de premissas desorientadoras e entrelaçadas que se intensificam e desdobram ao longo de Videodrome, criando uma viagem cinematográfica profundamente perturbadora (e um filme que, nas palavras do crítico Robin Wood, “se embrulha em tantas ambiguidades que é muito difícil de ler”). À medida que Max passa pelas suas terríveis transformações, o filme oscila entre o thriller psicossexual, a ficção científica, as teorias da conspiração e o body horror, tornando difícil saber exatamente o que estamos a ver: um pesadelo, uma série de alucinações, ou uma realidade completamente diferente. O que quer que seja que Cronenberg parece sugerir, os maiores horrores de todos encontram-se sobretudo dentro de nós mesmos.


Ana Naomi de Sousa


Ana Naomi de Sousa é realizadora e jornalista. Realizou os documentários The Architecture of Violence, Angola — Birth of a Movement, Guerrilla Architect e Hacking Madrid — todos eles exibidos na Al Jazeera English. Colaborou com a agência Forensic Architecture, em Saydnaya, e num documentário interativo sobre uma prisão militar síria para Amnistia Internacional. Colaborou com Decolonizing Architecture em vários filmes e instalações. Escreve sobre a política pós-colonial, espacial e cultural para diversas plataformas, incluindo The Guardian, Al Jazeera e The Funambulist.

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