Rodada em Nova Iorque no começo da década de 1980, Variety é a primeira longa-metragem da cineasta americana Bette Gordon. Coescrito com Kathy Acker (escritora e artista feminista pró-sexo), fotografado por Tom DiCillo (entre outros, diretor de fotografia dos primeiros filmes de Jim Jarmusch) e acompanhado por uma banda sonora imaginada por John Lurie, o filme conta com aparições de Nan Goldin (que documenta fotograficamente a rodagem) e Cookie Mueller. Mais de 40 anos após a sua realização, o filme iluminado a néones e luzes vermelhas de Gordon parece capturar o espírito de toda uma época, seduzindo tanto pela sua dimensão documental como pela sua reflexão em torno dos paradoxos do desejo feminino numa cultura fortemente marcada por imaginários patriarcais.
A protagonista de Variety é uma jovem ingénua cuja experiência enquanto vendedora de bilhetes num cinema pornográfico de Times Square a conduz a explorar as suas pulsões e desejos. Ao invés do que se passa nos filmes clássicos hollywoodianos que Variety não se coíbe de citar, Christine (Sandy MacLeod) não é aqui o simples objeto passivo das fantasias e do olhar masculinos. Pelo contrário: Variety inverte a configuração do chamado “olhar masculino” (male gaze). Este último refere-se, resumidamente, à forma como o cinema clássico tende a atribuir aos personagens masculinos a prerrogativa do olhar, objetivando e reduzindo à condição de imagem ou de “ser-para-o-olhar” os personagens femininos. Atraída pelos sons que se escapam da sala de cinema, Christine abandona rapidamente a minúscula bilheteira de vidro onde se encontra exposta como uma atração adicional, para se introduzir na penumbra da sala de projeção. Aí pode também ela ver sem ser vista as imagens pornográficas que desfilam no ecrã e exercem o seu poder enigmático sobre os espectadores masculinos. Estas imagens (quase sempre relegadas por Gordon para o fora de campo) retêm o seu olhar e a sua imaginação. Progressivamente obcecada por um dos clientes do cinema (um homem banal, que a convida a assistir a um jogo de basebol no Yankee Stadium e que ela suspeita vagamente de que esteja envolvido em negócios pouco claros), Christine assume no filme a posição voyeurista ativa habitualmente associada ao herói masculino. No filme de Gordon, é a protagonista com ares de heroína hitchcockiana quem persegue através das ruas o objeto masculino da sua curiosidade e das suas fantasias.
Documentando uma Nova Iorque entretanto desaparecida, do Fulton Fish Market até Asbury Park, as deambulações de Christine constituem um confronto com as suas próprias pulsões: uma aprendizagem do desejo. Paradoxalmente, é a pulsão escópica (um instrumento de opressão) que permite a Christine aceder à condição de sujeito desejante. Se em Vertigo (Alfred Hitchcock, 1958) o personagem de Scottie transforma Judy em Madeleine — o elusivo objeto do seu desejo —, em Variety, Christine recria-se a si mesma à imagem das suas fantasias. Que estas últimas sejam espoletadas pelo imaginário voyeurista da pornografia faz parte das contradições que Gordon deseja abordar. Escritos por Acker, os monólogos crus e poéticos ditos por Christine são também eles uma forma de explorar os paradoxos do desejo feminino numa cultura patriarcal.
Se o filme de Gordon inverte os papéis que caracterizam o thriller clássico, a sua dívida para com o género do film noir é evidente — e não apenas porque Christine possui algo da sexualidade ameaçadora e intrigante das mulheres fatais que o habitam. Como na maior parte dos filmes do género, a relação com a cidade é também ela fundamental. Simbolizado por uma Times Square noturna, iluminada por néones gritantes, como os que ornam a fachada do velho cinema pornográfico que dá nome ao filme, o red light district de Manhattan é o cenário ideal de Variety. O filme não documenta apenas algumas das paisagens icónicas da Nova Iorque decadente dos anos 80: Variety homenageia também o meio underground que viu surgir. Vejam-se a esse propósito as sequências no Tin Pan Alley, célebre bar de Times Square que empregava apenas mulheres (entre as quais Nan Goldin) e acolhia exposições e performances. É aí que Christine e outras mulheres trocam as suas confidências, reclamando para si a noite e o noturno como um espaço-tempo também ele propício à solidariedade e à emancipação feminina.
Teresa Castro
Historiadora e teórica do cinema e das imagens, Teresa Castro é professora no Departamento de Estudos Cinematográficos da Université Sorbonne Nouvelle. O seu trabalho mais recente concentra-se nas abordagens ecológicas e ambientais do cinema e da cultura visual contemporânea. Paralelamente, desenvolve também crítica e programação.
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