“Chamam-me ‘La Agrado’ porque sempre quis tornar agradável a vida dos outros”, diz Agrado (Antonia San Juan) na emblemática cena de teatro de Todo sobre mi madre (1999), dando voz às experiências de muitas mulheres cis e trans de quem, historicamente, se esperou que dessem prazer a outras pessoas e se submetessem às regras sociais. Almodóvar desmascara sem rodeios esses papéis convencionados, reclamando a capacidade de agir daqueles que dão prazer, reorientando-a magistralmente para o cuidado, a amizade e a solidariedade. À medida que se desenrola diante de nós a habitual miscelânea de formas, luzes, ângulos e cores vibrantes que se tornou a imagem de marca do realizador, assistimos à forma como, recorrendo ao exagero, este desafia não só as convenções de géneros cinematográficos, mas também as de género, sexualidade e normalidade. Nesta joia queer, vemo-nos mais uma vez rodeados pelas “mulheres de Almodóvar”, universo a que nos habituou em filmes marcantes que antecederam esta obra-prima, como Mujeres al borde de um ataque de nervios (1988), Tacones lejanos (1991) ou La flor de mi secreto (1995). Tal como essas obras, também Todo sobre mi madre é um drama que parte de uma tragédia insuperável, contudo impregnado de um humor espirituoso, alegria e esperança. O resultado é um labirinto tragicómico que nos permite, enquanto espectadores, penetrar nas vidas deste leque de personagens profundamente complexas.
O filme é uma celebração da mulher em todas as suas formas, explorando as experiências interligadas de mães, irmãs, amantes e amigas, paralelamente abordando questões complexas como a monoparentalidade, a perda de um filho, doença terminal, toxicodependência, gravidez, trabalho sexual, trabalho precário, fama, fraternidade, amor homossexual e destruição de género — tudo ao mesmo tempo! Como muitas das obras de Almodóvar, Todo sobre mi madre não pode ser reduzido a um relato linear e sintético, antes se desenrolando de modo rizomático, entrelaçando passado, presente e futuro, simultaneamente unindo as personagens por enredos narrativos e laços emocionais. A tristeza convive com o riso, que por sua vez se alia à angústia e à beleza. Este intricado novelo de sentimentos dá ao filme uma profundidade emotiva que faz com que nos sintamos companheiros de jornada das personagens, vivendo com elas os seus triunfos, as suas perdas e transformações.
No centro dessa jornada está Manuela (Cecilia Roth), enfermeira de transplantes que foi atriz, uma mãe solteira cuja vida se vê destroçada quando o seu filho adolescente, Esteban, morre no dia em que cumpre 17 anos. Esteban, cujo sonho é tornar-se escritor, é atropelado por um automóvel quando tenta conseguir um autógrafo do seu ídolo, a atriz de teatro Huma Rojo (Marisa Paredes), numa noite de chuva depois do espetáculo — uma homenagem inconfundível à marcante sequência do acidente do filme Opening Night (1977), protagonizado pela lendária Gena Rowlands. Devastada pela morte do filho, Manuela decide viajar para Barcelona para se encontrar com o pai de Esteban, Lola, uma mulher transgénero com uma doença terminal, que nunca tinha chegado a saber que tinha um filho. Pelo caminho, reencontra a sua velha amiga Agrado, trabalhadora sexual transgénero, e começa a trabalhar para Huma no teatro, acabando por assumir o papel de Stella na peça Un tranvía llamado Deseo. Um piscar de olho direto a Bette Davis em All About Eve (1951), filme que Manuela e Esteban veem juntos no início de Todo sobre mi madre.
Manuela também conhece Rosa (Penélope Cruz) — uma jovem freira que está grávida e foi infetada com HIV por Lola —, tornando-se mais tarde a sua cuidadora, assim como da criança que Rosa deu à luz, após a morte desta. À medida que as suas vidas se entrelaçam, estas mulheres formam uma rede intricada de cuidados com a sua forte presença. Pelo contrário, a ausência de Esteban, o filho de Manuela, praticamente a única figura masculina do filme, torna-se uma personagem-fantasma, que conduz a narrativa como narrador principal. O fantasma de Esteban, em conjunto com Lola, o seu pai ausente e, no entanto, omnipresente, entreliga as personagens, influenciando as suas decisões e escolhas de vida. Através desta presença espectral, Almodóvar explora magistralmente os temas da perda e da memória.
No centro de toda esta complexidade narrativa está, sem dúvida, o trabalho dos cuidadores, retratado como uma tarefa de amor e uma expectativa socialmente depositada nas mulheres. No entanto, o realizador recusa-se a romantizá-lo e apresenta-o como estratificado e, por vezes, constituindo um fardo. Desta maneira, desafia as narrativas convencionais sobre a maternidade e a feminilidade e celebra a força e a capacidade de resistência das mulheres, simultaneamente assumindo as suas vulnerabilidades. Na mesma linha, o filme encara o trabalho sexual e não o retrata como uma inevitabilidade para mulheres trans e em situação precária; é antes um de muitos caminhos, nem demonizado nem considerado inescapável. O filme evita cair na vitimização, caracterizando as suas personagens como responsáveis pelas suas próprias vidas. As cenas iniciais, em que Manuela percorre de carro, devagar, a periferia da cidade em busca de Lola, despertam talvez o receio de estarmos perante um retrato sensacionalista e estereotipado das identidades trans e queer; mas rapidamente constatamos que se trata afinal de uma representação muito mais complexa e inovadora.
Dessa perspetiva, o já referido monólogo de Agrado na cena no teatro é um dos momentos mais fortes do cinema queer e trans*. É um momento radical de autorrepresentação, onde ela expõe os custos — tanto financeiros como emocionais — de se ser fiel a si próprio. Ao fazê-lo, Agrado derruba a quarta parede, obrigando-os a ficar ou a abandonar a sala, tornando-os assim cúmplices da sua narrativa. O seu monólogo desestabiliza o binário realidade/atuação, autenticidade/artifício, reforçando a identidade — tema geral do filme — como algo de fluido e performativo, obrigando a pessoa a uma constante reinvenção de si mesma. Nada é fixo ou simples; as identidades são complexas, intersetando-se e evoluindo à medida que a história avança.
Numa época em que os indivíduos transgénero e não-binários se veem de novo ameaçados, as palavras de Agrado recordam-nos, a nós e ao mundo: “És tanto mais autêntica quanto mais te aproximas do que sonhaste ser.”
Ece Canlı
Ece Canlı é uma investigadora, artista e música cujo trabalho cruza regimes materiais, políticas do corpo e performatividade. É doutorada em Design pela Universidade do Porto e é atualmente investigadora no CECS da Universidade do Minho, onde investiga as condições espaciais, materiais e tecnológicas do sistema de justiça criminal, o encarceramento queer, o design penal e o feminismo da abolição. Como artista, emprega técnicas vocais estendidas e eletrónica para criar som para performances encenadas, exposições e filmes, tanto em colaboração como a solo.
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