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The Young Girl

Victor Guimarães
3 de Maio de 2025

Nas farpas, a luz

O cinema de Souleymane Cissé, realizador maliano falecido recentemente, é mais conhecido por sua tríade dos anos 1980: Baara (1980), Finyè (1982) e Yeelen (1987). Especialmente nesta obra-prima, Cissé deixou como marca na história das formas um estilo prenhe de imaginação mítica e de evocação alegórica. À primeira vista, Den Muso (The Young Girl, 1975), sua estreia na direção de longas-metragens, não poderia estar mais distante desse futuro tom: é um filme áspero, cortante, brutal. Fincado no presente, o olhar de Cissé radiografa as cisões da sociedade maliana — especialmente o abismo entre os lugares dos homens e os das mulheres —, no compasso de uma câmera severa e de uma montagem abrasiva, que deixa farpas por todo o tecido do filme.

 

No centro do relato está a trajetória da menina Ténin. Criada em uma família abastada e tradicional, ela se move como pode entre o confinamento da casa aristocrática e as breves escapadas para ir ao cinema ou aos bares da cidade em companhia da irmã. Uma chaga de infância marca sua existência: em decorrência de uma meningite, Ténin é muda. Em paralelo, Sékou, um enérgico rapaz, se insurge contra as más condições de trabalho numa fábrica de bicicletas e decide se demitir. Seu patrão é ninguém menos que o pai da protagonista.

 

Nas margens, a câmera de Cissé autopsia as entranhas de uma sociedade partida: entre os que estão condenados ao trabalho incessante — a solda, o batimento de uma laje em mutirão — e os que dele se servem. Mas a cisão que mais importa aqui é aquela entre os homens e as mulheres. Enquanto aqueles deslizam velozmente pela cidade em suas motocicletas, estas estão confinadas à casa ou aos arredores. Se têm dinheiro suficiente e são jovens, podem ainda se mover nas brechas, às escondidas, para procurar alguma forma de prazer enquanto tentam escapar do assédio irrestrito dos rapazes. Aos solavancos, a montagem nos leva de uma sequência à outra, alternando entre a observação e o mergulho narrativo, entre o afresco de grandes dimensões e o retrato, não sem antes nos fazer experimentar a vertigem dos acidentes. Den Muso é um filme esburacado.

 

Quando Sékou e Ténin se encontram, num primeiro momento ainda há um resquício da promessa doce de um amor juvenil. Ele é atraente, vivaz, tem consciência de classe. Ela não tem palavras para oferecer, mas a ternura de seu olhar diz tudo. Logo, no entanto, a aridez reinante carcomerá o filme por dentro. Nas margens de um rio, Ténin é estuprada por Sékou, e o silêncio infecto da banda sonora nos instala no deserto. Mais próxima dos filmes iniciais de Ousmane Sembène — especialmente Mandabi (1968) e Xala (1975) — do que daqueles que o próprio Cissé viria a fazer na década seguinte, a câmera de Den Muso se aproxima perigosamente das vísceras das coisas, seu corte é seco e impiedoso, e os ruídos da cidade não cessam de se infiltrar em tudo.

 

Grávida, Ténin ainda tentará apostar no amor, mas Sékou já está à caça de sua próxima vítima e se recusa a reconhecer o filho. Agora ela terá de se haver com a fúria do pai, com a aniquilação de seu desejo, com a impossibilidade de sua vida. Neste filme de arestas reluzentes e de becos sem saída até onde a vista alcança, qualquer possibilidade de fuga respira mal. A moçada vai ao cinema em busca de sonho, mas o que se vê na tela é a explosão documentária de um templo religioso. Até os sacerdotes, que prometem iluminar o destino de Sékou com a ajuda dos espíritos, se revelam ladrões de meia-tigela. Mesmo a vingança de Ténin, que ateia fogo ao refúgio para onde Sékou leva as mulheres, é aplacada pela mangueira dos bombeiros. Ténin não é “uma negra de...” (ou pelo menos não no sentido do filme de Sembène), mas um destino implacável como aquele da protagonista de La noire de... (1966) é o que inevitavelmente lhe espera.

 

Há uma leitura recorrente de Ténin como uma grande alegoria de uma África silenciada, vilipendiada, indefesa. Mas sua personagem é tão singular, tão abarrotada de vida interior, que o filme se recusa a transformá-la em um repositório de dor. A menina folheia um álbum de fotos e a montagem lhe concede um vislumbre de uma outra história: de vestido de noiva, com um penteado impecável, ela sonha acordada um casamento impossível. Numa sequência solar, deslumbrante, animada pela música e impregnada de uma alegria infantil, ela corre pelos espaços da casa no encalço da irmã, para atacá-la com a água de uma mangueira de jardim. Nessas frestas por onde entra um bocado de luz, o futuro do cinema de Cissé se infiltra, ainda clandestino.

Victor Guimarães
Crítico de cinema, programador e professor. Doutorado em Comunicação Social pela UFMG, com passagem pela Université Sorbonne-Nouvelle (Paris 3). Colaborou com publicações como Cinética, Con Los Ojos Abiertos, Senses of Cinema, Desistfilm, Outskirts, Documentary Magazine, La Vida Útil, La Furia Umana e Cahiers du Cinéma. Foi programador no forumdoc.bh, na Mostra de Tiradentes e na Woche der Kritik de Berlim, e realizou programas especiais para espaços como XCèntric (Barcelona), Essay Film Festival (Londres) e Cinemateca de Bogotá. Atualmente, é programador do FICValdivia (Chile) e diretor artístico do FENDA (Brasil).

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