Luas Novas: João Gonzalez
Saguenail
13 de Novembro de 2023

De filme em filme, na ainda curta obra de João Gonzalez, detectamos constantes e progressões. As primeiras caracterizam um estilo imediatamente reconhecível, as segundas permitem analisar uma evolução narrativa e temática. Ao nível formal, a economia de recursos é o primeiro traço que chama a nossa atenção: paleta de cores reduzida a algumas tonalidades no seio das quais domina o vermelho; animação limitada a uns poucos objectos na imagem, sendo que todos os outros se mantêm fixos — pelo que o cenário exterior urbano em The Voyager, o décor da cabina do barco em Nestor e a paisagem íngreme da encosta montanhosa em Ice Merchants contrastam com a mobilidade das personagens humanas, e revelam hiperbolicamente a sua essência de obstáculo a ultrapassar — elipses que permitem eliminar trajectos. Os planos são, por conseguinte, todos muito curtos, e a montagem apoia--se sistematicamente no “efeito Kuleshov”. Ao nível narrativo, os três filmes apresentam personagens caracterizadas por um defeito: medo do meio ambiente urbano — tamanho dos edifícios e turba dos citadinos — que atinge o patamar da agorafobia em The Voyager (o filme acaba com o ruído do trinco da fechadura accionada pela personagem); mania de fixar os objectos num local preciso embora o espaço-barco seja ininterruptamente sacudido pela ondulação marítima em Nestor; nostalgia da mulher/mãe cuja chávena, preciosamente conservada, recorda quotidianamente a ausência, perda e absurda aquisição de chapéus a cada descida em Ice Merchants. Observa-se, todavia, uma nítida evolução de filme para filme, globalmente descritível como passagem do realismo ao simbolismo, do psicológico ao alegórico. The Voyager, centrado nos grandes planos da personagem, pretende levar o espectador a partilhar a fobia que o habita, convidando-o a projectar-se no protagonista. É isso que acontece ainda em Nestor, não obstante a situação passar a ser simbólica: o movimento marítimo é apenas uma figuração de um princípio de instabilidade ao qual a personagem pretende em vão opor-se; o próprio barco ostenta uma configuração irrealista, mais próxima da torre do que do navio. Por fim, em Ice Merchants, o irrealismo da cabana cravada na falésia leva o espectador a uma observação distanciada, quiçá brechtiana, da fábula exposta. Com efeito, neste último filme, todos os elementos revestem um sentido metafórico: o habitat suspenso remete para a precariedade da condição humana, a fusão do gelo remete para o aquecimento global, o comércio de cubos de gelo para o absurdo da nossa sociedade mercantil, e mesmo a compra reiterada de chapéus parece, num primeiro tempo, sátira do gesto consumista. O filme “descola” quando os chapéus, levados pelo vento — ou pelo simples movimento do ar — durante a queda das personagens, pai e filho, juntam-se e abraçam-se, assumindo, em grande plano, o protagonismo da narração e mostrando-se mais expressivos do que os humanos. A derradeira queda, sem pára-quedas, fornece-nos a chave da metáfora: os chapéus tombados formaram uma anti-montanha protectora, e adquirem um valor da ordem do amor — o fantasma da mulher veio, qual anjo, abrandar a queda — e da salvaguarda. Aquilo que parecia mais absurdo e gratuito vem a revelar-se o dado mais importante e carregado de significação final. O filme consegue uma notável mistura de elementos realistas (cordas, mota, transacções monetárias) e elementos simbólicos (gelo, chapéus, abismo). É talvez esse duplo jogo realismo/simbolismo que caracteriza os filmes de João Gonzalez, tanto no plano da narrativa como no plano formal, suficientemente realistas para activarem no espectador os processos de projecção-identificação, suficientemente simbólicos para deixarem ao espectador a certeza de uma significação a interpretar e de uma lição a colher. O fim dos filmes nunca é totalmente claro: será que a vizinha do viajante lhe deixa provisões para garantir a sua sobrevivência? Os danos causados pela tempestade poderão ou não ser reparados e o que vai ser de Nestor? O que é que vai acontecer ao pai e ao filho milagrosamente salvos após a queda, e que comércio — já que eles são “mercadores” — conseguirão montar? A animação artesanal é talvez, de todas as criações artísticas, a que exige mais tempo e trabalho — de oito a vinte e cinco desenhos por segundo consoante os movimentos e respectiva velocidade — embora também seja a que reclama menos recursos materiais: mesa de luz, papel de desenho, lápis. Implica uma extrema concentração narrativa. A curta (mesmo a muito curta) metragem é a sua forma natural. Como também concebe as suas bandas sonoras e compõe as suas músicas, João Gonzalez conseguiu concentrar as suas fábulas nuns poucos minutos, com o ritmo musical a condicionar o da montagem. Os criadores talentosos de cinema de animação não faltam em Portugal — de Abi Feijó e Regina Pessoa a David Doutel e Vasco Sá, Laura Gonçalves e Alexandra Ramires (limitando-me a citar nomes de pessoas a trabalhar no Porto que conheço pessoalmente, pois a lista seria longa e eu não sou especialista neste domínio) — mas infelizmente os seus filmes só são exibidos no âmbito de festivais especializados ou de sessões excepcionais. O Batalha Centro de Cinema poderia, e deveria, organizar uma programação regular dedicada à animação.

Saguenail


Doutorado em Cinema e Pedagogia pela Universidade de Provence (França), Serge Abramovici (Saguenail) lecionou Língua Francesa, Pedagogia, Literatura e Cinema na UM, na ESMAE, na ESAP e na FLUP. É autor de meia centena de livros (poesia, ficção, ensaio) e de uma vasta filmografia (mais de 40 títulos, alguns em parceria com Regina Guimarães). Fundou a revista A Grande Ilusão e a associação Os Filhos de Lumière. Foi programador do ciclo O Sabor do Cinema, no Museu de Serralves (2002–2013). Atualmente, anima o programa Literama e Cinetura. É membro-fundador do Centro Mário Dionísio/Casa da Achada.

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