The Man Who Fell to Earth

Isadora Neves Marques
3 de Outubro de 2025

Se o corte de cabelo adolescente perfeito de David Bowie, com a sua cor febrilmente laranja, não for suficiente para levar uma audiência à sala de cinema com The Man Who Fell to Earth (1976), a montagem fragmentada e indisciplinada, a cinematografia envolvente e o experimentalismo inato típico de Nicolas Roeg certamente deverão ser. Então com uma vasta experiência como director de fotografia, incluindo clássicos como Doctor Zhivago (1965), de David Lean, Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut, e Far from the Madding Crowd (1967), de John Schlesinger, à sua quarta longa-metragem Roeg criou em The Man Who Fell to Earth uma das ficções científicas mais inteligentes, hipnóticas e delirantes da década de 70, tão psicadélica quanto terra à terra.

 

Enquanto Roeg colhia os frutos do sucesso do seu perturbante e polémico filme de terror Don’t Look Now (1973), Bowie encontrava-se em mais uma fase de transição na sua carreira camaleónica, prestes a entrar nos seus chamados “anos de Berlim”. O filme foi o primeiro contacto de Bowie com o cinema e, segundo reza a lenda, estava tão tomado pela cocaína que, mais tarde, confessaria pouco se lembrar da rodagem. Verdade ou mentira, Bowie está perfeito no papel, interpretando um “alienígena” aristocraticamente chamado Thomas Jerome Newton, num estilo mudo e encantatório: uma figura frágil e excêntrica à volta de quem as restantes personagens gravitam.

 

Ideia ousada e inspirada, colocar o iconoclasta britânico no inóspito, e esse sim alienígena, interior norte-americano, a desmaiar sob o calor intenso da pradaria ao som de banjos e flashbacks do Destino Manifesto — cenas, a meu ver, bem mais bizarras do que as memórias exoplanetárias, nas quais uma família de extraterrestres luta contra uma seca, à espera que Bowie a salve com os seus planos terrestres. A personagem de Thomas, interpretada por Bowie, surge atordoada e fora de contexto, tal como a montagem fragmentada do filme, em que passado e futuro se entrelaçam psicologicamente.

 

Canonicamente andrógino, Bowie parece aqui extrassensível ao lado dos seus colegas norte-americanos, mais rudes e rosados. “Estás demasiado magro” diz, preocupada, a sua futura esposa, interpretada pela atriz Candace June Clark, saída do êxito de George Lucas, American Graffiti (1973), após ele sangrar do nariz num elevador. Esta sensibilidade é ainda mais delicada nas cenas íntimas entre Bowie e June Clark — os seus corpos nus, o cabelo adstringente dele e a infantilidade dela compõem as cenas mais belas de todo o filme. Entre a interpretação do elenco, os luxuosos panoramas anamórficos e zooms ousados, esta é uma experiência cinematográfica altamente somática — é difícil não nos sentirmos como o alienígena de Bowie, violado num mar de imagens televisivas, excessivamente americanizadas, delirantes e pobres.

 

Para além do estilo, no entanto, são as personagens secundárias — a amante de Bowie, o seu advogado e trabalhadores —, que, nos seus monólogos internos e externos, trazem um toque de mundanidade e humanidade ao que é, afinal, um filme centrado num bilionário extraterrestre. Pois, não obstante a sua fragilidade, o alienígena de Bowie é também inquietante e implacável nas suas visões tecnológicas e empresariais. É o seu advogado quem o expressa melhor: “World Enterprises vê-se como um lobo solitário, um pioneiro, se quiser, temos esse espírito de ação.” Revisitado nestes nossos tempos de ditadura algorítmica, há no filme uma certa premonição da atitude “yippieekiyay”, para citar Bruce Willis em Die Hard (1998) típica do “cowboyismo” de Silicon Valley. A leitura tradicional de The Man Who Fell to Earth retrata Bowie como um anjo caído, trágico e ingénuo, que acaba por sucumbir, em última instância, ao vício e à exploração nas mãos da ganância dos terráqueos. Mas esse homem que caiu à Terra é também perturbante e, muitas vezes, assustadoramente negligente com os outros na sua pose de salvador.

 

Dos estados redneck da América a uma Berlim dividida, Bowie reutilizaria imagens de The Man Who Fell to Earth em duas capas de álbuns, mais célebres que o próprio filme: Station to Station (1976) e Low (1977). Como se, ao trazer o seu alienígena americanizado para uma Berlim em rutura, conectando diferentes imaginários, incluindo o seu britânico originário, Bowie pudesse dar imagem ao estilo pop ambiente, assombrado e dissociativo, que começava a explorar. Entre esses álbuns e o filme, foi a capa de Low que vi primeiro — para mim, uma das mais belas da sua carreira — inspirando-me, aos 16 anos, a cortar e pintar o cabelo como o de Bowie. Uma nota de como um bom casting, direção de arte e maquilhagem podem fazer de um filme errático e de nicho uma obra icónica.

Isadora Neves Marques
Isadora Neves Marques é realizadora de cinema, artista visual e escritora. Os seus filmes estrearam em festivais como Cannes (Semana da Crítica), Toronto e Roterdão. Em 2022, foi distinguida com o Ammodo Tiger Short Award. No mesmo ano, foi a Representação Oficial Portuguesa na 59.ª Bienal de Veneza e recebeu, entre outros prémios, o Special Prize do Pinchuk Future Generation Art Prize. É cofundadora da produtora de cinema Foi Bonita a Festa e da editora de poesia Livros do Pântano. Contribui regularmente para o e-flux Journal e é autora dos livros de poesia A Campa de Marx (2025) e Sex as Care and Other Viral Poems (2020), da coletânea de contos Morrer na América (2017) e de várias antologias de pensamento. É doutoranda na Ruskin School of Art, Universidade de Oxford.

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