The Hunger

Pedro João Santos
24 de Outubro de 2025

É assim tão falacioso reduzir a estrela rock, enquanto imagem em movimento, ao teledisco? O seu magnetismo, mais visto em três minutos de refrão e glamour, contamina qualquer longa-metragem com um fedor a MTV? Pouco importa a conclusão; já ultrapassámos o dogma do videoclipe como parente pobre e hormonal do cinema, para o qual foi e tornou a ser, afinal de contas, laboratório e caixa de areia. A diva harmoniza as formas, longa e curta; facilita um mínimo de gramática partilhada, especialmente o verbo de ação, que a vedeta não sabe senão conjugar. É a condição sine qua non: o grande plano sobre o seu rosto, penetrando a objetiva ou o contracampo, por pouco não se engasgando com a sua própria bazófia. Se isso fosse prerrogativa do teledisco, como explicaríamos as figuras de James Dean e Mae West?

Esta tese curto-circuita se tomarmos em conta a videografia de David Bowie na fase Let’s Dance (álbum acabado de lançar quando as salas norte-americanas recebem The Hunger), menos centrada na sedução pop: basta o teledisco da faixa-título, um tratado sobre a marginalização dos aborígenes australianos. Mas tudo bem: Bowie nem sequer é a primeira rockstar vista em The Hunger (em português: Fome de Viver). Dessa incumbência arroga-se Brian Murphy, demónio-líder dos Bauhaus: sempre no limite da glória, sempre puído. O cabelo lambido em todas as direções; o olhar sombreado e as poses de um mostrengo, ao som de “Bela Lugosi’s Dead”. A discoteca fumada, tingida de um azul fosco, parece um espaço liminar (como aqueles onde singraram Tina Turner, Pete Burns, Kate Bush, Billy Idol). Para completar o cartão do videoclipe de 1980 e picos, e gritar bingo, faltavam só a luz hipersaturada e os freeze frames… Ah, lá estão eles. A montagem é feroz e anticlimática ao longo de toda a película, lacerada com os tipos de violência arbitrária e arrojo estético só encontrados no obscuro A One Man Show (1982), de Grace Jones e Jean-Paul Goude, algures entre o filme-concerto, o teledisco e a videoarte.

Na sua estreia enquanto realizador (pouco antes de assinar Top Gun e Beverly Hills Cop II), Tony Scott não se apoquentou com as parecenças à televisão musical. E não se esgotavam tampouco na sequência de abertura. Veja-se, também, a dramática analepse da personagem de Catherine Deneuve (e a angústia psicossexual do seu escravo). Uma pequena rapsódia de travellings laterais, cortinas insufladas de vento, a solitária mansão de mármore, a iluminação quase noir: descrição que serve a The Hunger e também ao teledisco expressionista de “Total Eclipse of the Heart”, de Bonnie Tyler (1983, por Russell Mulcahy, o autor de Highlander). Em 2013, Grant Singer concretizou estas sugestões videomusicais, citando The Hunger no primeiro teledisco que realizou para Sky Ferreira: “You’re Not the One” simula o plano onde a primeira vítima se exibe diante de um projetor, uma parede fria de azul (cor dominante do filme, encontrando rival, em 1986, no Manhunter de Michael Mann).

Ainda assim, em 1983, Scott fintou as comparações à então recente MTV: arma arremessada várias vezes contra Flashdance, também desse ano, como lembra o investigador Marco Calavita. Se os bois foram chamados por nomes diferentes, a verdade é que as críticas partilhavam um fundamento: a noção de um cinema tão estilizado quanto oco (e, subentende-se, subordinado ao biorritmo de uma pop maquinal). O crítico Roger Ebert detestou tanto Flashdance quanto The Hunger, mas deu nota máxima a Diva (1981) de Jean-Jacques Beineix, fundador do mais tarde designado Cinéma du Look, bastião do oco, da plasticidade mais estupidamente plástica. Tony Scott não nos admite esses confortos (tão) desmiolados: a alegoria está à mão de semear, por muito telegráfico que seja tudo o resto, por entre os véus rendilhados e as correntes de ar.

Deneuve, a vampira Miriam, seduz humanos para depois os recondicionar, por transfusão sanguínea: ela é Pigmaleão. No papel do violoncelista John, Bowie deixará de ser Bowie enquanto o diabo esfrega um olho, para se revelar uma carcaça em decomposição: é a estátua a ruir, execrada pelo amor moribundo. The Hunger é esquemático no seu desenho de um romance azedo, e nem por isso vilaniza Miriam, que Deneuve encarna prevendo uma certa margem de erro. Está tudo na postura. Vampira sem ser vampe; atraída ao sangue, sem alarde (e isso vê-se na magistral cena de sexo com Susan Sarandon, o oposto diamétrico da sexploitation de Vampyres, de 1974, para pegar num exemplo anterior de vampiras sáficas). Se não tem a bondade de auxiliar o condenado, talvez seja por não saber como se dá o golpe de misericórdia.

Esta é a elegia dos amantes corrompidos, a balada de um romance feito fantasma, maldição incurável. E é duplamente inquietante por dar a David Bowie o papel mais indefeso, esvaído em si mesmo, inutilizado nas suas virtualidades de estrela rock (mais legíveis em The Man Who Fell to Earth ou até em Merry Christmas, Mr. Lawrence). Apesar do desfecho trémulo, The Hunger é a melhor propaganda contra uma certa filosofia pop, que só um teledisco consegue defender: depois disto, ninguém quer viver para sempre.

Pedro João Santos
Jornalista, radialista e programador de cinema (n. 2001). Focado na crítica de música pop, escreve para o Ípsilon, no jornal Público, e outras publicações (The Guardian, The Quietus, Bandcamp Daily). Trabalha na Antena 1, rádio para a qual concebeu o documentário Madonna: A Lei da Reinvenção. Após defender uma dissertação sobre telediscos de António Variações e Lena d’Água, tornou-se mestre em Etnomusicologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Fundou o cineclube da associação cultural Albardeira, produzindo e moderando sessões no Teatro Municipal de Ourém.

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