“Nos lamentos do coração, as flores do amor não morrem”, dizem os primeiros versos da canção que acompanha as imagens iniciais de The Girls (Gehenu Lamai). Os versos funcionam como uma espécie de prólogo para a história de duas irmãs, Kusum e Soma, meninas que dão título ao filme. Nesse prenúncio, anuncia-se o caminho tortuoso, ainda que atravessado de gestos de ternura e lealdade, da realidade cultural limitada na vida de meninas/mulheres no Sri Lanka dos anos 1970.
The Girls é o primeiro longa-metragem de Sumitra Peries como diretora, tornando-se a primeira mulher a dirigir um filme no Sri Lanka. Peries assina igualmente o roteiro e a montagem do filme, função que aliás inaugurou sua trajetória no cinema. Ela foi montadora de cinco filmes antes de The Girls, pelos quais ganhou prêmios de montagem. Seu primeiro filme nesta função foi em 1963 com Lester James Peries, um dos precursores do cinema no Sri Lanka, com quem viria a se casar e trilhar uma vida inteira de colaborações.
Com frequência chamada de “poeta do cinema do Sri Lanka”, Peries conta em entrevistas que, inicialmente, intencionava se tornar escritora. Foi esse seu impulso inicial no mundo das artes que a levou, aos 21 anos, a migrar para a Europa, para se juntar ao seu irmão mais velho, que há muito havia deixado o Sri Lanka após a morte prematura da mãe. Ela narra também que desde sempre se achava uma escritora mediana e, sobretudo, sentia que carecia de explorar outro meio como forma de expressão. Foi assim que, chegando à Suíça para estudar, optou pelo cinema, com o desejo de fazer filmes documentários — tratava-se de contar sobre as realidades do Sri Lanka através do cinema.
Talvez os trabalhos iniciais como montadora possam ter transformado esse interesse pelo documentário, mas não o desejo de falar da realidade de sua cultura. Fato é que, em The Girls, Peries trouxe para as telas uma narrativa de ficção baseada em romance homônimo de Karunasena Jayalath, um testemunho poético do contexto político do Sri Lanka no início dos anos 1970, com as tensões e contradições que marcam o período. A história de The Girls é contada em retrospectiva, numa espécie de balanço crítico da vida de Kusum, a irmã mais velha. É com Kusum que, literalmente, olhamos para trás no espelho retrovisor do tempo.
A rememoração do passado tem início com o retorno de Nimal, seu amor proibido e não realizado de adolescência, ao vilarejo onde ela vive. No desenrolar da trama, passamos a conhecer o cotidiano de Kusum, marcado pela pobreza de uma família camponesa cujo pai doente não trabalha, e a mãe é a base do sustento de todos. Conhecemos também Soma, sua irmã mais nova que, diferente dela, não se dedica aos estudos e sim a uma carreira de miss. A vida “das meninas” é atravessada por barreiras culturais e de classe que, como anunciado na melancólica canção do início do filme, não oferece alternativas senão a resignação.
Kusum transita em suas memórias sobretudo em dois ambientes. O da loja e da casa da tia, mãe de Nimal, do rapaz a quem, a princípio, chama de irmão mais velho. É ali onde Peries nos mostra as dinâmicas da comunidade e a relevância da manutenção dos costumes. A diferença de classe entre ela e Nimal se mostra como um obstáculo intransponível. E Kusum, ainda que fantasie um futuro casamento com Nimal, cede aos valores da sociedade e opta por manter a integridade de sua relação com a tia, renunciando ao amor.
O outro ambiente das lembranças é a escola que ela consegue frequentar graças a uma bolsa de estudos. No cotidiano das aulas, conversas com a amiga Padmini, e debates com demais colegas, Kusum parece feliz, vivendo como uma jovem comum. A escola é também o caminho para a diretora expressar o contexto político do momento, os dilemas do Sri Lanka independente, as tensões do desenvolvimento do capitalismo e uma crítica à dependência econômica do país. “Não ser independente e acreditar que somos é muito mais perigoso”, diz Gunpala, um dos colegas de classe de Kusum.
Contudo, apesar da aparente autonomia gozada por Kusum e Padmini, Peries também utiliza o ambiente escolar para nos lembrar das limitações e diferenças de gênero. E que também naquele universo as meninas têm seus anseios tolhidos. As restrições aumentam à medida que o filme avança, e se apresentam claramente na passagem de tempo que traz Nimal não mais como aluno, mas como professor de Kusum. Estas limitações são ainda evidenciadas na reflexão final da protagonista quando, desolada, ela nos conta, já de volta ao momento presente, que não conseguiu entrar na universidade mesmo depois de tantos anos de estudo, tendo se tornado uma dentre os milhares de jovens desempregados do país.
O gesto de mostrar criticamente as realidades das mulheres no Sri Lanka é um dos tópicos centrais dos filmes Peries. E, em uma aproximação do contexto cinematográfico mundial, ao colocar em paralelo as produções de diretoras no Sul Global, é interessante perceber como nessa mesma época, em territórios e culturas diferentes, outras mulheres, que também integram o hall das pioneiras no mundo do cinema, começavam a fazer seus filmes. Mais ainda, notar como em obras como Sambizanga (1972), da franco-guadalupense Sarah Maldoror, ou Letter from My Village (Kaddu Beykat) (1976), da senegalesa Safi Faye, centravam-se na crítica de questões sociais, culturais e políticas dos contextos em que estavam inseridas. Por fim, engrossando a trama que de algum modo articula semelhanças na entrada dessas diretoras no cinema, está o fato de todas estas entradas acontecerem após essas diretoras terem desempenhado diferentes funções por detrás das câmeras, seja como assistente de direção (Maldoror), montadora (Peries) ou atriz (Faye).
The Girls, que em 1978 foi produzido por Lester James Peries, foi restaurado pela Film Heritage Foundation em parceria com a Fundação Lester James Peries e Sumitra Peries, a partir de fundos do FISCH — France-India-Sri Lanka Cine Heritage — Saving Film Across Borders, e teve seu relançamento em 2025, na sessão de clássico no Festival de Cannes, 47 anos após sua estreia em 1978. Essa foi a primeira que vez em que esse consórcio promoveu a restauração uma obra do Sri Lanka.
É curioso pensar que uma obra que na época foi um sucesso junto ao público por onde circulou, recebendo inclusive reconhecimento internacional — ganhou prêmio em Cartago, festival mais longevo do continente africano, e foi filme destaque daquele ano no London Film Festival —, tenha sido tão pouco vista, estudada ou debatida. Isto vale não só para The Girls, mas em certa medida para o conjunto da obra de Sumitra Peries. A aposta é que com o lançamento da cópia restaurada se amplie o interesse pelo filme e, junto com ele, o reconhecimento da obra desta cineasta tão ativa na história do cinema do Sri Lanka, passando a ser incontornável, clássica de fato, quando se fala de cinema de um modo geral e, mais especificamente, de um cinema com mulheres [1].
[1] Utilizamos aqui a mudança na preposição tal como proposta pela pesquisadora e curadora brasileira Carla Maia em sua tese de doutorado “Sob o risco do gênero: clausuras, rasuras e afetos no cinema com mulheres”, defendida em 2015. Maia defende um “cinema com mulheres em lugar de mulheres: ao focar na dimensão relacional das obras, tanto no que diz respeito a sujeitos que filmam e que são filmados, tanto no que concerne a relações entre filmes e espectadores, o que buscamos é indicar menos a busca de categorizações do que atentar para espaços de partilha criados por cada obra”.
Janaína Oliveira
Pesquisadora e curadora de cinema. Professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e consultora da JustFilms — Fundação Ford. É Doutora em História e foi Fulbright Visiting Scholar no Centro de Estudos Africanos da Universidade Howard nos EUA. Desde 2009, desenvolve pesquisas e realiza curadorias em cinema, trabalhando também como consultora, membro de júri e conferencista em vários festivais de cinema e instituições no Brasil e no exterior. Atualmente, além de participar em outras iniciativas curatoriais, integra o Comité de Seleção do BlackStar Film Festival, o conselho consultivo do Doc’s Kingdom e o conselho curatorial do Criterion Channel.
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