The Country Doctor
Genevieve Yue
5 de Outubro de 2023

Lorenza Mazzetti: Contra Todas as Probabilidades


A história da recuperação de The Country Doctor (1953), um filme perdido durante quase 70 anos, é quase tão impressionante como a da sua criadora iconoclasta, Lorenza Mazzetti. O momento-chave da sua redescoberta ocorre durante a gravação do documentário Together with Lorenza Mazzetti (2023), de Brighid Lowe. Mazzetti, envelhecida mas não menos travessa, diz ao entrevistador Henry K. Miller que o filme está perdido. “Temos de o encontrar!”, insiste ele, mas suavemente, na sua maneira britânica de falar. Mazzetti acena com a mão. “Dei-o a um produtor… um amigo de Jonas Mekas…” Miller mal consegue conter o seu entusiasmo: “É o Amos Vogel?” Os olhos de Mazzetti são vagos, mas depois abrem-se, focados. “Amos, Amos… Sim! Ele!"

Daí, Miller e Lowe visitaram a Universidade de Wiscousin Madison, que guarda os documentos de Amos Vogel, o fundador do lendário cineclube Cinema 16, em Nova Iorque. Sob uma versão mal grafada do nome de Mazzetti, encontraram a cópia de The Country Doctor no cofre. Os bibliotecários em Wiscousin não faziam ideia de que o tinham. O filme foi então restaurado pelo BFI e, juntamente com o filme de Lowe, teve a sua estreia mundial em 2023.

Mazzetti é uma figura que tinha já quase passado despercebida na história do cinema. É talvez mais conhecida não enquanto cineasta, mas enquanto autora de Il cielo cade, um relato semi-ficciconal da Segunda Guerra Mundial, contado da perspetiva de uma jovem cuja família judia adotiva é assassinada pelos nazis. O livro ganhou o prestigiado Prémio Viareggio e é hoje considerado um clássico da literatura italiana. Antes da publicação do romance, Mazzetti raramente falou sobre o seu perturbador passado. Quando era jovem, trocou abruptamente Itália por Londres e, segundo conta, bateu à porta da Slade School of Fine Art. Aí, exigiu encontrar-se com o diretor, e quando questionada sobre o motivo, respondeu com uma assertividade que teria de ser inventada se não fosse também verdadeira: “porque sou genial!”. Foi admitida ali mesmo.

Mazzetti rapidamente se juntou a Lindsay Anderson, Tony Richardson e Karel Reisz, originando o movimento Free Lorenza Mazzetti: Contra Todas as Probabilidades 3 Cinema, impulsionado por um grupo de cineastas que tinham em comum uma atitude anti-comercial, uma rejeição da narrativa convencional, e uma atenção aos ritmos da vida da classe operária. O filme Together (1956), de Mazzetti, sobre dois estivadores surdos, foi exibido no primeiro programa de Free Cinema, em 1956, e mais tarde ganhou reconhecimento no Festival de Cinema de Cannes. Mas Mazzetti não seguiu o percurso dos seus camaradas do Free Cinema, que acabaram por encontrar a escola cinematográfica do realismo kitchen sink inglês. Após o seu regresso a Itália no final dos anos 50, retirou-se praticamente da realização de cinema e concentrou os seus esforços na escrita, na pintura, e nas marionetas.

Together é reconhecidamente uma obra do Free Cinema devido aos seus planos documentais do East End de Londres. O olhar de Mazzetti é especialmente atraído para crianças que brincam em ruas poeirentas e sujas de lixo. Mas os temas mais obscuros do filme, sobretudo a alienação social vivida pelos dois protagonistas, relacionam-se com uma vertente diferente de trabalho que é expressa de forma mais veemente nos seus dois filmes anteriores, duas curtas-metragens feitas enquanto era estudante na Slade: K (1953) e The Country Doctor. Ambas eram adaptações de histórias de Franz Kafka que, como afirma Mazzetti no documentário de Lowe, era “como um profeta” pela sua capacidade de “ver monstros” em vidas aparentemente “normais”.

Da mesma forma, K (que leva emprestado o nome do protagonista de O Processo, de Kafka) adapta A Metamorfose (1915) como uma espécie de alucinação. Em vez de se transformar num enorme inseto como acontece no conto de Kafka, o homem de K, interpretado por Michael Andrews (o protagonista de Together), transformou-se internamente. Fica a olhar, na cama, apático, indiferente às súplicas dos membros da sua família, que lhe batem à porta. Empilha móveis num canto e sobe à sua torre improvisada; mais tarde, sobe ao telhado e dança perigosamente pelo beiral. Inicialmente preocupados, os seus familiares respondem com escárnio e, por fim, com indiferença. Mazzetti observou que Kafka antecipou a capacidade dos nazis de transformarem seres humanos em animais. Ao psicologizar esta transformação de outra forma metafórica, ela problematiza a fonte da perturbação: é K que se encontra mentalmente doente, ou são todos os outros?

As linhas gerais de The Country Doctor seguem de perto o conto de Kafka de 1917: um médico é chamado, de noite, para atender um homem doente numa aldeia próxima. Um cavalariço prepara-lhe um cavalo e, no momento em que o médico se encontra de saída, vê o cavalariço agarrar a sua aia e obrigá-la a ir para dentro. Apesar de atormentado por esta visão, a sua viagem já se encontra em curso. Quando chega à cabeceira do seu paciente, constata que o jovem não se encontra, na verdade, doente. Os aldeões, de rostos impassíveis, formam uma vigília à sua volta. Um homem — um padre, talvez — dirige um coro de crianças que canta um refrão ameaçador. Uma sensação de expectativa — morte? libertação? — paira no ar. O médico deita-se na cama ao lado do seu paciente, que o repreende por nem sequer chegar pelo seu próprio pé. O médico, então, revê o seu prognóstico. “Jovem”, diz ele, “está terrivelmente ferido, mas enquanto médico não o consigo ajudar.” O filme termina com ele a afastar-se de cavalo, o vento a rodopiar à sua volta.

Na narrativa de Kafka, a doença em The Country Doctor tem uma origem mais ou menos identificável: uma ferida pestilenta na anca do paciente. Mais uma vez, Mazzetti apaga este sinal concreto de alteridade, para que nunca tenhamos a confirmação visual daquilo a que Kafka chama uma “flor”. O relato da cineasta acentua e faz proliferar o sentido de doença moral e pavor atmosférico da história. Começa antes do médico chegar à aldeia, na sua própria casa, com a violação da sua aia. Curiosamente, Mazzetti retira a ênfase desta cena de violência sexual, que é mais explícita em Kafka; em contrapartida, transforma significativamente a cena do médico e do paciente deitados lado a lado na cama, tornando-a queer e filmando grandes planos íntimos.

As interpretações que Mazzetti faz de Kafka são assustadoras e profundamente perspicazes. Vão contra o cliché muito utilizado do termo “kafkiano” para revelar, mais do que uma ordem social invertida e sinistra, um mundo realmente desorientador e desumanizado. Mazzetti não foi apenas uma das primeiras a adaptar as suas obras para cinema, foi também expressamente proibida de o fazer. Felizmente, Mazzetti nunca considerou abandonar os seus projetos. Os cinéfilos irão regozijar-se com a descoberta deste filme magnífico, que dura apenas 10 minutos. Mas suspeito que também os deixará a desejar mais. Como teria sido se Mazzetti tivesse feito mais filmes? Se, depois daquele contacto de raspão com o Cinema 16 de Vogel, o seu trabalho tivesse encontrado companhia entre o estilo surrealista de realização avant-garde à la Maya Deren, Luis Buñuel, e Kenneth Anger ou, mais tarde, existencialistas melancólicos como Andrei Tarkovsky e Béla Tarr? O trabalho de Mazzetti suscita este tipo de especulação contrafactual: um sinal seguro de uma artista sem limites.


Genevieve Yue

Genevieve Yue é professora associada de Cultura e Media e diretora do programa Screen Studies no Eugene Lang College, The New School. É coeditora da série Cutaways na Fordham University Press, e os seus ensaios e críticas foram publicados

na Reverse Shot, October, Grey Room, The Times Literary Supplement, Film Comment e Film Quarterly. O seu livro Girl

Head: Feminism and Film Materiality foi publicado em 2020 pela Fordham University Press.

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