Tesouros do Arquivo
Joana Canas Marques e Lídia Queirós
28 de Dezembro de 2023

Tesouros do Arquivo apresenta alguns dos mais recentes restauros e digitalizações de arquivos públicos e privados do contexto nacional e internacional, refletindo sobre o papel destes novos velhos filmes na nossa compreensão do que é o cinema, dos seus cânones e história. Procura também salientar a importância de salvaguarda do património mundial cinematográfico e de uma crescente consciência coletiva no que toca à preservação física das cópias. A ilusão da imaterialidade do cinema distraiu-nos da sua irrefutável verdade física, do que acontece com a transformação do suporte (quer seja película, cassete, disco ou ficheiro) em algo vivo através da projeção.


Tal como as personagens no cinema, todos os filmes restaurados possuem uma back story, invisível ou pouco conhecida, da sua ressurreição. E se é verdade que muitos deles partem de iniciativas de cinematecas, de festivais especializados, como Il Cinema Ritrovato, e de projetos privados fundamentais, como o World Cinema Project da Film Foundation de Martin Scorsese, podemos também afirmar que há uma miríade de histórias muitas vezes surpreendentes. Obras que foram censuradas ou engavetadas pouco depois de estrearem, filmes julgados perdidos até ao aparecimento de uma cópia num quarto empoeirado da casa de alguém, resgates feitos pelos próprios realizadores, que querem mostrar o que na altura não conseguiram, e o aparecimento de inovações tecnológicas que permitem hoje recuperar o que antes seria irrecuperável — a história do restauro está repleta de tesouros.


Perguntámo-nos como poderia um ciclo que anda em torno de um processo concreto — o restauro e digitalização de filmes, escolhas que são em si um gesto curatorial — ter uma lógica unitária e pertinente, mantendo uma inerente diversidade geográfica, cronológica e formal. Arriscamos dizer que são todos filmes vivos, embora realizados há 20, 50 ou 80 anos. Falam-nos, entre outras coisas, de guerra e de amor, e falam-nos de linguagens de cinema. A proposta é precisamente dar a ver e a conhecer um conjunto de filmes que, pela pertinência da sua mensagem hoje, forte qualidade cinematográfica e pela forma como aceitam sem dano o tempo, constituem uma verdadeira (re)descoberta.


Muitos são escritos, contados e vividos por mulheres. Histórias feministas que cruzam séculos, como Orlando, que parte do clássico de Virginia Woolf para uma reinterpretação fulgurante de Sally Potter, oito décadas mais tarde, com Tilda Swinton como protagonista (e cuja mensagem permanece absolutamente transformadora e atual, como se comprova pelo novo take deste ano realizado por Paul B. Preciado). Em Brief Encounters, da realizadora ucraniana Kira Muratova, duas mulheres veem as suas vidas ligadas por um amor, uma história sincera e sensivelmente filmada, nunca perdendo o olhar feminino das suas protagonistas. Também adaptado de um romance escrito por uma mulher, Muriel Spark, Driver’s Seat mostra-nos uma enigmática Elizabeth Taylor em fim de carreira, encarnando uma mulher neurótica, fugindo por Roma. Este filme, um dos menos conhecidos da atriz, perscruta habilmente o envelhecimento no feminino.


Vivemos também num tempo em que os vislumbres de conflitos armados são inescapáveis, e testemunhamos com impotência o absurdo da guerra e suas atrocidades. Com apenas 24 anos, Kubrick apresenta-nos em Fear and Desire, com precoce mestria cinematográfica, uma alegoria antiguerra cuja potência reside exatamente no carácter indefinido da sua história, relembrando-nos que os horrores são sempre os mesmos, qualquer que seja o território, povo ou tempo. Por outro lado, o complexo The Dupes, adaptado de um romance do palestiniano Ghassan Kanafani e realizado pelo mestre do cinema egípcio Tewfik Saleh, alicerça-se numa realidade tão específica que prova, já em 1972 (ano de estreia do filme e do assassinato de Kanafani), a extensão histórica da trágica condição imposta ao povo palestiniano, hoje mais insuportável do que nunca. Cicatrizes de guerra e histórias de conflito que nos advertem para as perniciosas relações de domínio em sociedade, onde também se insere Harmonika, sessão para famílias de um dos nomes maiores do cinema iraniano, Amir Naderi. Encenando um simples “era uma vez um rapaz que ganhou uma harmónica”, a obra desenlaça-se numa lição sobre abusos de poder e a vida no Irão.


Resultante destas e de outras perturbações que definem uma existência global, chegamos às potenciais consequências de viver no mundo de hoje. Um crescente desencantamento com a sociedade capitalista resulta em ansiedades e depressões que contaminam de forma mais ou menos direta estes filmes. Da Roma de Elizabeth Taylor à Xangai sombria e poluída de Shuzou River, uma trágica história de amor pós-Tiananmen e proibida pelo governo chinês. 20 anos antes, em Bubble Bath, o génio da animação psicadélica húngara György Kovásznai criava uma comédia musical onde o protagonista enfrenta uma crise existencial engolindo comprimidos no dia do seu casamento. O filme, incompreendido à época, foi retirado pouco depois de ir para as salas.


Inevitavelmente, ou talvez não, os temas que atravessam este ciclo são aqueles que viajam pelo tempo e se revelam, para além de extremamente atuais e urgentes, transversais à diversidade formal, geográfica e social destas obras. Para além da unidade que lhes conferem, estes temas são espelho das problemáticas que nos são mais queridas ou comoventes, e através das quais nos ligamos na vastidão da experiência humana.


Tesouros do Arquivo toma a partir de fevereiro uma cadência quinzenal, em que estes e outros temas da atualidade serão postos em diálogo através do olhar de mais novos velhos filmes.

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