Tarde para morir joven

Maria Castello Branco
16 de Novembro de 2025

No sopé seco da cordilheira, no verão de 1990, uma comunidade provisória ensaia a promessa de um mundo nascente. Uma aldeia de ocasião vai-se compondo, pouco a pouco, e, na orla deste laboratório comunitário, as crianças e os adolescentes descobrem como se habita um território em que tudo parece provisório e tudo parece começar.

 

Aproximamo-nos de Sofía, que parece esperar um amor que vem, uma linguagem que ainda não se agarrou, as festas improvisadas, a música, os silêncios compartilhados, as pequenas crueldades sem cálculo. Tudo funciona como um ensaio de futuro. A comunidade discute o abastecimento de água, o fogo que ronda o verão, o equilíbrio precário da rotina. As casas, ainda em construção, tapam o vazio das paredes com plástico transparente. E Sofía navega o interior de uma outra fronteira com a mesma hesitação. Chama-se adolescência, ou um país em transição. A energia que pede forma.

 

O filme trabalha a superfície do real como um sedimento frágil. O calor, o pó, o fumo, as texturas solares, a lentidão da tarde são elementos que encostam o espectador à materialidade de um verão que queima. Não há explicação exterior que organize este mundo. O sentido surge dos detalhes acumulados. O mundo não se ergue sobre metáforas. O mundo surge em intervalos curtos, quando a luz filtra a poeira.

 

A data é mais do que mera circunstância. Na viragem dos anos 80 para a década de 90, o país respira um ar de primeiro ensaio democrático, como se estivesse a reaprender a habitar o comum. Pinochet nunca é mencionado. Não há transparência neste processo. Há zonas cinzentas, avanços e recuos, ilusões e hesitações. A comunidade que se reúne na encosta funciona como maquete de um pacto social a recompor-se, sem grande programa, sem uma narrativa fechada. A adolescência e o início democrático partilham o mesmo regime temporal, a mesma contiguidade. Um país e uma jovem procuram linguagem, procuram forma, procuram um modo de habitar o futuro ainda sem léxico. Há corpos que crescem, há pactos que se reconfiguram, há permanências que se desfazem durante todo o filme, que se constrói sobre a simultaneidade.

 

Dominga Sotomayor filma a incerteza com uma precisão raríssima. Cada plano parece recolher partículas de memória que, apesar de não se explicarem, persistem. A imagem em movimento transforma-se aqui num exercício de sensorialidade, de atenção microscópica ao modo como um mundo se organiza no plano das perceções. O que se apreende é um regime de vida que se está a inventar, onde adolescentes e adultos procuram um desenho possível de comunidade. Essa procura é o pulso do filme.

 

Quando o incêndio devora finalmente o ar, há algo que se revela, quase como se o que arde fosse o que existia em estado latente. A chama ilumina a precariedade das coisas. A chama ilumina o risco. A chama ilumina a espera. Sofía, debaixo de uma cascata, olha o mundo como quem decifra a primeira imagem do futuro.

 

O filme termina sem síntese, sem fecho. Talvez porque não haja fecho para processos que estão ainda a germinar. A comunidade continua. Sofía continua. O país continua. O cinema que olha estas transformações também continua. A infância termina, a democracia inicia-se, a utopia abandona a certeza de um mapa e assume a forma de um caminho aberto.

 

Uma trilha de poeira que sobe a encosta. Uma manhã que recomeça depois do incêndio. Uma promessa que escolhe existir inacabada.

Maria Castello Branco
Maria Castello Branco é comentadora na CNN Portugal e cronista no Expresso. É coautora do podcast Lei da Paridade. Licenciou-se em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Católica Portuguesa e concluiu um mestrado em Teoria Política na London School of Economics. Trabalhou em consultoria de assuntos públicos, com experiência em comunicação estratégica e políticas públicas.

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