Smog

Fernando José Pereira
20 de Setembro de 2025

Comecemos por fazer um exercício de linguagem.

Desviar o termo smog da sua habitual conotação atmosférica, como consequência da poluição operada pelos dispositivos emissores de dióxido de carbono, e representativa de uma certa ideia de moderno. Utilizemos, por isso, o termo já não na sua forma literal, mas como referência metafórica a uma espécie de portal, uma fronteira que se coloca entre um exterior asséptico e um interior vivenciado. Entre o vazio de uma erudição arquitectónica que, à falta de pessoas, ocupa o espaço público, e o preenchido da domus, o doméstico, esse espaço conquistado seguro e vivenciado, e que, no limite, reverbera os gostos e as capacidades de todos os que o ocupam.

Existe uma oposição visível e que resulta de uma outra que se encontra oculta: o olhar do realizador sobre uma sociedade que não é a sua. Sobre uma sociedade que está a construir o seu presente sem raízes — as raízes foram exterminadas ou confinadas em forma colonialista para reservas em configuração de exterioridade — e, como tal, se afirma através de uma crença num futuro que se encontrava, já na época, a tentar corporizar-se no presente.

Uma sociedade, portanto, sem história.

O olhar de um realizador, talvez, fascinado com esse espaço quase sci-fi que tem perante os seus olhos: limpo, asséptico e ausente de humanos; de um realizador que vem de um país que se constrói nas estruturas sólidas de uma relação milenar com a história. E, que, conjunturalmente, na época, se estava a tentar erguer da ruína extensa em que o país e o continente se tinham tornado. Lembremos que em 1962 apenas tinham passado 17 anos desde o final da Segunda Guerra Mundial. A Itália e a Europa ainda fechavam as feridas do conflito.

Um país, um continente e uma sociedade, portanto, com história.

A determinada altura do filme, o personagem principal questiona o facto de não haver pessoas e a resposta é paradigmática: estão ou nos automóveis ou em casa. Esta é a senha que permite ao olhar do realizador abandonar o exterior e aventurar-se pelos interiores das casas ricas de novos e velhos ricos americanos e, sobretudo, não americanos. Tudo muda, as casas estão repletas de pessoas ávidas de cultura do país da língua de si, mas, acima de tudo, muda o tempo histórico do que os belíssimos planos nos dão a ver. E muda em sentido inverso: aqui não é o futuro a presentificar-se. Aqui é o passado a tentar dar estrutura a um presente desenraizado de história. Casas com interiores neoclássicos, pianos decorados com ornamentação barroca e um estar que é emprestado das classes altas europeias do passado — o interior das casas contemporâneas. Há alguns exemplos carismáticos, como a Stahl House, que se encontram vazios. E, no entanto, tudo é um simulacro dessa realidade, tal como a decoração de um piano. Um kitsch social que se junta ao kitsch estético. Afinal, todo o esplendor clássico das festas advém do petróleo. Afinal, não se trata de nobreza enraizada nas estruturas de poder, mas de self-made men que constroem as suas casas de luxo junto aos poços de petróleo.

O petróleo que lhes fornece o dinheiro para as suas vidas falsas e que, ao mesmo tempo, envenena, com a formação do smog, toda a atmosfera de Los Angeles.

O filme termina com uma referência a uma casa famosa: a Triponent House, em Beachwood Canyon. Aí, novamente, num salto no tempo, o realizador mostra-nos o exterior do portal e, contudo, desta vez, visto desde o interior: nesse interior, o personagem principal do filme vê-se, outra vez, só, fechado numa espécie de prisão transparente. Transparente, como lhe dizem, porque a altura a que o edifício se encontra permite ver o lado de fora do smog.

Passados 60 anos, onde pára o glamour da arquitectura modernista de LA, ocupada pelo pastiche pós-moderno? O smog continua, por certo, até mais forte. Por baixo, oculto, tudo o que não vimos, mas sentimos latente no filme: a pobreza, o racismo e os motins trazem à tona a ocupação do espaço público pelo que lhe é inerente: a política, a cultura, o social, o artístico, etc.

Para finalizar, duas notas curiosas: a inserção de uma figura estranha num ambiente estranho — um pintor italiano a tentar vingar num país que não é o seu com uma forma de pintar que não é a sua, o expressionismo abstracto. E, no entanto, o que seria do expressionismo abstracto sem os artistas europeus que fugiram à guerra para se fixarem nos Estados Unidos?
A segunda nota é relativa a um diálogo fugaz, e talvez nem sequer interessante do filme, mas que contém uma palavra que, neste tempo de genocídio, explica muito do que agora se passa em termos históricos: um dos personagens refere-se a uma “terra santa”, à sua terra santa, como “Palestina”... Sendo o filme de 1962, trata-se de uma afirmação feita cinco anos antes da ocupação ilegal de 1967. É uma referência importante numa altura em que o território está sobre pressão e em risco de desaparecer sob o poder da potência ocupante — e o silêncio comprometido do mundo.

Fernando José Pereira
Fernando José Pereira (Porto, 1961) é licenciado em Pintura pela Universidade do Porto e Doutor em Belas Artes pela Universidade de Vigo. Desde os anos 90, desenvolve uma prática artística na qual se destaca a utilização do vídeo. Enquanto membro do coletivo de música eletrónica experimental Haarvöl, tem vindo, mais recentemente, a explorar a relação entre o vídeo e a música. A sua obra integra as coleções da Fundação de Serralves, do Centro Galego de Arte Contemporânea e da Fundação Calouste Gulbenkian, entre outros.

Batalha Centro de Cinema

Praça da Batalha, 47
4000-101 Porto
+351 225 073 308

batalha@agoraporto.pt

A enviar...

O formulário contém erros, verifique os valores.

O formulário foi enviado com sucesso.

O seu contacto já está inscrito! Se quiser editar os seus dados, veja o email que lhe enviámos.

©2025 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits by LOBA

01010101
02020202
03030303
04040404
04040404
batalhacentrodecinema.pt desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile