Schmeerguntz + The Brood
Alexandra João Martins
8 de Outubro de 2023

O Lado Lunar


O que resta de The Brood (1979) em Crimes of the Future (2022), de David Cronenberg, é a constante indagação sobre os limites do corpo, ou a ausência deles. Do corpo visceral, como carne, mas também dos rostos que encabeçam as figuras da subjectividade e do ego. Se no segundo se assiste à constante deformação ou reconstituição de corpos pós-humanos, ciborgues, portanto, num ambiente asséptico ditado pelo desenvolvimento tecnológico, em que o desejo se torna clínico ou, mais precisamente, cirúrgico, em The Brood (na versão portuguesa, A Ninhada), a deformação dos corpos — que é também, como se verá, a sua gestação — é a face visível das pulsões latentes do drama psicológico “humano, demasiado humano” vivido por Nola (Samantha Eggar). Institucionalizada, isolada e sujeita a métodos de psicoterapia experimentais na clínica do famoso Dr. Raglan (Oliver Reed), Nola recebe amiúde a visita da sua filha Candice (Cindy Hinds), que surge com escoriações no corpo. Paralelamente, ocorre uma série de homicídios no seio familiar que serão investigados pelo marido (em fase de separação) e pai de Candice, Frank (Art Hindle). Realizado na sequela do divórcio litigioso do próprio cineasta e, portanto, tendencialmente auto-biográfico, o filme manifesta ainda certas tendências sociais, como o aumento continuado do número de divórcios, e o recurso a terapias alternativas, mas também filosóficas, como o anti-psicanalismo em voga nos anos 70 — Capitalismo e Esquizofrenia I: O Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari é publicado em 1972.


Em The Brood, “matar o pai” ou “matar a mãe” deixam de ser recursos metafóricos para a ocupação do lugar de um outro dominador e/ou objecto de desejo, projecção que se designou como complexo de Édipo ou de Electra, de acordo com o sexo dos pais/filhos. À exposição de cada trauma de infância de Nola — designadamente os abusos físicos praticados pela mãe e a indiferença do pai — corresponde a revelação de um corpo transfigurado, que se multiplica autonomamente (sem presença fálica) com a gestação de pequenas criaturas desfiguradas — a ninhada —, assexuadas e sem umbigo, logo, sem cordão umbilical. Sem pai e verdadeiramente sem mãe, estes corpos exo-gerados em bolsas de água que se assemelham às de um vitelo não são crianças, são dejectos de uma infância traumática, da infância traumática de Nola, num enredo a que a filha, Candice, também não escapará. Afinal, os filhos são também Os Filhos do Medo (este é o título da versão brasileira) que os precede.


Eis então o que se vê quando a terapia ganha corpo, quando age: uma violência desenfreada que se gera de dentro para fora numa total profanação do corpo (que, por tradição, é sempre referente ao corpo de Cristo). Primeiro, fantasma, quando enverga um longo manto branco, depois, monstro, quando finalmente exibe a Frank a ferida aberta pendurada no ventre, para logo depois a rebentar com uma dentada, Nola age nas fronteiras da humanidade, onde ainda é possível reconhecer a mulher-sujeito, sobretudo no rosto que assombra os grandes planos, mas em que o corpo deformado e aparentemente desalmado se assume como monstro-objecto. “Monstro” e “mostrar” partilham, aliás, a mesma raiz etimológica, e Cronenberg, como Nola, não se inibe: vêem-se os rostos esmagados, os banhos de sangue, os gritos de pânico. Tudo concorre para essa sensação unheimlich que atravessa o filme, e cuja tradução mais fiel seria “infamiliar”. Tudo estranhamente familiar, como o suspeito fato-de-treino vermelho de Candice que se destaca na paisagem nevada do Canadá, ou as voluptuosas alcatifas encarnadas, que anunciam o desfecho sanguinário. Numa encenação mestra, Cronenberg vai revelando os objectos parciais das pulsões de Nola através de planos de detalhe fugazes das pequenas criaturas indiscerníveis, e até do martelo que esborracha a cabeça da sua mãe, e avó de Candice (Nuala Fitzgerald).


O lado lunar, simultaneamente sedutor e enigmático, da figura feminina é, enfim, a principal âncora desta história, e é também uma das imagens de abertura de Schmeerguntz (1965), de Dorothy Wiley e Gunvor Nelson. Numa sobreimpressão do umbigo de uma mulher grávida e da superfície lunar, os realizadores exibem a mutação sofrida pelo corpo e aludem metaforicamente a esse lugar desconhecido onde se deseja aterrar (no auge da corrida ao espaço, o vôo do Apollo 11 viria a acontecer poucos anos mais tarde). Outro paralelismo surge ainda através do inventivo raccord entre o ânus de um bebé e o ralo de uma pia de cozinha. Com características vanguardistas e um ritmo frenético de montagem, esta “sanduíche” de imagens provenientes de campanhas publicitárias, em que figura a mulher idealizada pela sociedade norte-americana à época, é o avesso formal de The Brood, mas não só. Nessas imagens, a mulher surge como figura estereotipada do lar e da maternidade — das limpezas à maquilhagem —, como corpo docilizado pela instituição familiar e social, que a montagem vai libertar pela acumulação irónica. Pelo contrário, em The Brood, a tensão instituída pela montagem é libertada pela expansão do corpo de Nola. É caso para dizer, deformando a frase de Donna Haraway, que os nossos monstros “são perturbadoramente vivos e nós próprios assustadoramente inertes”.


Alexandra João Martins


Licenciada em Ciências da Comunicação, mestre em Estudos Artísticos pela Universidade do Porto, e doutoranda em Estudos

Artísticos na FCSH-Universidade Nova de Lisboa, tendo sido bolseira da FCT. Escreveu para diversas publicações. Colaborou e integrou os comités de seleção dos festivais Curtas Vila do Conde e Porto/Post/Doc. Em 2017, foi selecionada para o Talent Press Rio e, em 2018, comissariou a exposição Como o Sol/Como a Noite, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito da retrospetiva dedicada a António Reis e Margarida Cordeiro no Porto/Post/Doc.

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