A partir do livro Bardo Thodöl, também conhecido no Ocidente como O Livro Tibetano dos Mortos, um texto considerado sagrado para a religião do Budismo, Lois Patiño imagina uma meditação visual e, a certa altura, também física sobre o que acontece após a morte. A primeira parte do filme (que está dividido em dois momentos distintos) decorre no Laos, retratando de forma contemplativa o ritmo e o estado meditativo de uma vida dedicada à prática da religião como algo fundamental. Num mosteiro, acompanhamos o quotidiano, em particular o do jovem (Amid) que assume como missão ler o Bardo para uma senhora idosa (Mon), que está próxima da morte. Como diz Amid, este é um livro que tem de ser lido por alguém de fora, porque contém as instruções para o que deve ser feito depois da morte, no caminho para o renascimento. Porém, Amid mostra-se receoso de não ter tempo suficiente para acabar de ler o livro a Mon antes de esta morrer.
Os encontros entre os dois revelam uma ternura e cumplicidade e, como ela afirma ao acordar, “Ainda bem que temos sonhos. Quando adormecemos, eles contam-nos histórias tão bonitas” — é uma aproximação ao universo onírico de Apichatpong Weerasethakul. Amid encarrega-se de ler o livro a Mon, mas está também a ler o livro para nós, que assim ouvimos não só os princípios da crença budista, como a “beleza de assumir uma nova forma”, mas também instruções que nos preparam para a transformação desta viagem para o desconhecido. Antes disso, porém, o dia-a-dia neste local aproxima-se de um espaço de sonho, onde a efemeridade do tempo se confunde com uma imutabilidade do mundo presente, um sentimento confirmado por uma abordagem visual despojada, ancorada na beleza fantasmagórica das imagens, no som hipnótico da natureza, no embalo da existência. Neste limbo onde o tempo parece não dar sinais da sua passagem, vemos como Amid e os monges se ocupam de assuntos espirituais, mas também com preocupações e esperanças para o seu futuro.
É, no entanto, quando chega o momento fatídico da morte de Mon que Lois Patiño arrisca um passo ousado, ao pedir, através de algumas linhas de texto, que o espectador feche os olhos durante os momentos seguintes, para sentir apenas através da luz que ocupa a espaços a escuridão, e os sons que o envolvem como um abraço, numa aproximação a este momento de intervalo entre a vida e a morte. É um momento arrojado porque exige também a cooperação do público, numa reciprocidade rara num filme, e a sua vulnerabilidade, de olhos fechados numa sala cheia de estranhos e perante a incerteza do desconhecido. Durante largos minutos, se arriscarmos abrir os olhos poderemos ver manchas de cores diferentes em breves flashes na escuridão, mas o melhor mesmo é manter os olhos fechados para sentirmos o efeito da luz a atravessar as pálpebras, e deixar-nos levar por uma experiência sensorial única numa sala de cinema, que relembra também a experiência colectiva do cinema como uma partilha comunitária.
Quando regressamos dessa viagem, ou seja, voltamos a abrir os olhos, estes demoram a habituar-se de novo à luz e a uma nova paisagem. Na segunda parte do filme, a acção muda-se para o arquipélago de Zanzibar, localizado no Oceano Índico, para acompanhar a vida de uma cabra bebé acabada de nascer, a possível reencarnação do espírito de Mon. Patiño usa dois directores de fotografia distintos para cada uma das partes. Se, na primeira parte, Mauro Herce filma o Laos como um espaço etéreo de transcendência espiritual, com os monges budistas a desvanecerem ou a confundirem-se com a natureza, nesta segunda parte, Jessica Sarah Rinland foca-se no lado material deste mundo, dando atenção várias vezes aos detalhes do trabalho manual dos habitantes desta terra. Sob o pretexto de acompanhar a pequena cabra e a criança que a adoptou como animal de estimação, acabamos por ouvir diferentes conversas desta comunidade. Se aqui estes diálogos reflectem uma preocupação mais directa com a materialidade do mundo, evocando a ideia da repetição da vida mundana perante a morte, ao fazer a ligação com a preocupação sobre a continuidade da vida da primeira parte, Patiño encontra uma harmonia poética, numa culminação dos temas da efemeridade e mortalidade que tem vindo a explorar no seu cinema. A palavra “samsara” refere-se na religião budista ao ciclo natural da vida como uma série de mortes e renascimentos. Aqui, Samsara é a vida que continua, a memória que perdura, o cinema que nos permite viver?
João Araújo
Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia do Porto, João Araújo escreve sobre cinema no À Pala de Walsh (do qual é coeditor desde 2017). Colabora, desde 2016, com o Festival Curtas de Vila do Conde, no comité de seleção, na moderação de conversas com realizadores e na coordenação editorial. É diretor e programador do Cineclube Octopus desde 2003. Em 2010, apresentou em vários pontos do país um filme-concerto a partir da filmografia de Yasujiro Ozu. Em 2015 colaborou com o Porto/Post/Doc na programação de um ciclo dedicado a Lionel Rogosin.
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