“Os filmes deveriam parecer-se mais com as nuvens — com uma densidade não palpável, mas visível. A superfície que se vê por fora da nuvem não é a mesma que vemos por dentro. Por dentro, é uma coisa que desaparece, desfaz-se, evapora-se, mas que nos deixa uma enorme impressão. É importante deixar o espectador sozinho com os factos.”
Este é o sentimento expresso pelo narrador em Amigos Imaginários (2019), obra onde a realizadora, artista visual e cenógrafa do Porto, Rita Barbosa, capta a complexidade e profundidade do cinema e da produção cinematográfica. A expressão enfatiza a visão perspicaz e poética da cineasta, salientando também a natureza evanescente e transformadora, assim como a construção interna e elaborada da sua obra.
No seu conjunto, a filmografia de Barbosa revela minucia na observação e uma exploração cuidadosa de temas da realidade mundana, bem como uma prática dedicada à escrita e montagem, ainda que fragmentária. Desafia convenções ao entrelaçar narrativas documentais e absurdas. Este percurso inclui a capacidade de conjugar intriga intelectual com elementos do fantástico e um humor refinado, orquestrando uma sinfonia visual habilmente capturada, evocando estéticas do cinema de autor francês, italiano e espanhol das décadas de 60 e 70.
Os filmes destacam-se pela abordagem transparente e reveladora da construção cinematográfica, mergulhando nas interações entre o visual e o auditivo, desvendando os artifícios e a artificialidade da indústria, e desconstruindo a ilusão cinematográfica como um meio de aproximar a ficção ao facto. Revelam também relações sociais subjacentes à produção cinematográfica, desafiando as estruturas vigentes com uma câmara que é vista, frequentemente, observando o território a uma distância solitária.
No seu filme de estreia, À Noite Fazem-se Amigos (2016), Barbosa permeia o drama da vida de uma famiglia com a inércia do real, a ausência de resolução, e a passagem de um tempo vazio, seja em casa ou à procura de lobos — animais altamente sociais que vivem em matilhas e são conhecidos pelos seus laços familiares, servindo muitas vezes como metáfora para o trabalho de equipa e a importância da comunidade. Referências explícitas à espinha dorsal dos serviços de streaming e plataformas on demand, alterando a paisagem tradicional de financiamento e de produção audiovisual, bem como a obras canónicas, de Tarkovski a Marx, transformam o filme numa crítica incisiva às limitações orçamentais que suportaram a produção cinematográfica naquele ano.
No entanto, a essência do trabalho de Barbosa torna-se singularmente palpável em Amigos Imaginários (2019), uma obra entre o cinema e a performance, que se destaca como uma exploração arrojada dos mecanismos de ilusão e de domínio da pós-produção, oferecendo ao público uma autenticidade rara por meio da exploração da técnica de farsa, conhecida como foley (sonoplastia).
Nesse contexto, enquanto os artistas foley atendem meticulosamente às exigências auditivas do guião e do raccord, assegurando uma fusão perfeita entre as imagens e os sons do quotidiano no Porto, a câmara, em sintonia com os padrões rítmicos, formas, movimentos e propriedades dos efeitos sonoros, mergulha a audiência numa experiência honesta. O filme aprofunda-se nos elementos técnicos e criativos que moldam a narrativa cinematográfica, explorando os bastidores do processo criativo e desvendando os truques e artifícios que dão vida ao universo visual e auditivo do cinema. Nesta obra, a realizadora apresenta uma composição sonora e narração envolventes, atenta aos minuciosos detalhes visuais e atmosféricos que aparecem dourados sob o sol poente, no final do filme, situando o trabalho da Rita Barbosa no domínio de uma nefologia cinematográfica cativante.
A análise do seu último filme, Segunda Pessoa (2022), oferece uma visão esclarecedora sobre o método, a evolução e a diversidade do trabalho de Rita Barbosa, evidenciando como ela mobiliza material entre filmes para construir narrativas diferentes, reconstruindo a sua linguagem cinematográfica. O filme utiliza material b-roll de produção anterior, conferindo à cidade do Porto um papel proeminente e estabelecendo uma base sólida para a contextualização e apreciação da cidade como um repositório selvagem do habitar. Esta obra, caracterizada por uma abordagem irónica e um realismo distinto, observa o contexto urbano da realizadora. Retrata, ainda, momentos enraizados na essência lítica da arquitetura urbana e ilustra a capacidade desta em assimilar os elementos dinâmicos da sétima arte.
Estes filmes requerem a imersão do público nas camadas intrincadas da narrativa, exigem que ele explore o texto e desvende as metáforas que revelam a complexidade e profundidade da experiência cinematográfica. Os filmes, assim como as nuvens, incitam uma apreciação estética das construções visuais e sonoras, aproximando o público dos elementos, muitas vezes ocultos por detrás da magia do cinema.
*O foley é uma técnica de efeitos sonoros gravados em estúdio, onde sons de passos, portas a fechar, trovões, etc., são reproduzidos por sonoplastas em sincronia com o filme, com o objetivo de conferir mais realismo às cenas.
Joana Rafael
Joana Rafael é arquiteta e investigadora. Foca (questões de) ecologia, geografia humana e ciências naturais, abrangendo cultura contemporânea, estudos de média, arte e tecnologia, refletindo sobre os limites de infraestruturas em relação ao funcionamento do sistema terrestre. Concluiu o Doutoramento em Culturas Visuais, o Mestrado em Arquitetura de Pesquisa na Goldsmith (Londres) e o Mestrado em Arquitectura e Cultura Urbana Metropolis, do consórcio entre a Universidade Politécnica da Catalunha e o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Faz consultoria para escritório de arquitetura e leciona na Escola Superior Artística do Porto.
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