Rebels of the Neon God
Giovanni Marchini Camia
13 de Janeiro de 2024

Desde que existem artistas, também existem musas. Ao cinema não faltam pares icónicos, mas a relação entre Tsai Ming-Liang e Lee Kang-Sheng é única na história desta arte. A analogia mais próxima é a colaboração de François Truffaut com Jean-Pierre Léaud no ciclo de Antoine Doinel, que segue a evolução da personagem epónima de Léaud ao longo de cinco filmes e 20 anos. Um declarado admirador de Truffaut, Tsai levou o seu modelo muito mais longe. Lee participa em todas as 11 longas-metragens de Tsai até à data, interpretando sempre uma versão ficcionada dele mesmo chamada Hsiao-Kang, bem como num catálogo de curtas e trabalhos feitos fora do cinema, que vão desde telefilmes a obras para galerias e uma instalação de VR (realidade virtual).


Depois de ter descoberto Lee num salão de jogos, Tsai colocou-o no elenco de Boys (1991), um filme de 50 minutos que realizou para a televisão taiwanesa. “Arrependi-me rapidamente de o ter escolhido. É tão lento, as suas reações são completamente diferentes das reações das pessoas comuns”, recorda Tsai numa entrevista de 1997com os Cahiers du cinéma. Mas acrescenta que a experiência eve o mérito de lhe ter ensinado uma nova forma de trabalhar com atores. “Este miúdo iluminava o ecrã, e eu sentia-me condicionado por um método demasiado rígido, em vez de me adaptar ao seu ritmo. Apesar disso, gostava dele e gradualmente aprendi a gostar do ritmo dele. Foi assim que decidi chamá-lo para Rebels of the Neon God. Estreada em1992, Rebels é a primeira longa-metragem de Tsai. Escreveu o papel de Hsiao-Kang expressamente para Lee, e inspirou-se livremente na biografia do ator (mantendo até o seu nome: “Hsiao” é frequentemente usado em mandarim com o diminutivo, pelo que o nome do personagem se traduz para “Pequeno Kang”). Em retrospetiva, é evidente que o processode aprendizagem que descreve na entrevista dos Cahiers fazia parte de um continuum mais vasto na evolução da sua estética pessoal, que começou concretamente com Rebels e continua em progresso.


O cinema de autor em Taiwan e Hong Kong, tal como a economia de ambos os territórios, estava em total florescência quando Tsai fez a sua estreia. Rebels tinha alguma afinidade com outros filmes marcantes da época, como os retratos elegantes da juventude infeliz no amor e da pequena criminalidade de Chungking Express (1994), de Wong Kar-Wai, e de Goodbye South, Goodbye (1996), de Hou Hsiao-Hsien. Contudo, ao capturar a alienação dos corpos que navegam uma paisagem urbana no meio de amplas transformações, a sensibilidade de Tsai é mais próxima à de Michelangelo Antonioni. Como uma cápsula do tempo de Taipei durante este significativo período de transição, Rebels é um dos grandes filmes urbanos. A mise-en-scène alterna entre vistas vertiginosas da capital taiwanesa, invocando poesia a partir da selva de símbolos publicitários e autoestradas eternamente congestionadas, e espaços íntimos retratados com uma atenção háptica às texturas: o papel de parede floral de um sombrio quarto de um love hotel, os azulejos bolorentos e a porcelana manchada de uma casa de banho pública. Ao lado de chuvas torrenciais e outras imagens de água carregadas de simbolismo, o filme exterioriza assim os sentimentos de personagens que mal sabem como se expressar, almas solitárias e desesperadas cujas vidas continuamente se cruzam, mas que falham sempre em relacionar-se.


Ainda que as preocupações temáticas de Rebels tenham permanecido fundamentais no cinema de Tsai, muitos dos seus elementos formais desapareceram progressivamente. A música tema indelével de Huang Shu-Jun, por exemplo, uma melodia sintética sexy e assombrosa que toca sempre que as emoções atingem um clímax, não tem equivalente entre os filmes mais recentes. Tsai só usaria música novamente de forma tão evidente nos sensacionais números musicais e de dança de The Hole (1998) The Wayward Cloud (2005), ambos visões altamente idiossincráticas do musical. Ao longo do tempo, a câmara foi ficando mais parada, os planos mais longos e os diálogos mais escassos. Em quase todos os aspetos, Rebels é um filme relativamente silencioso e contemplativo. Comparado com Days (2020), a última longa-metragem de Tsai, que contém composições estáticas que se mantêm por cerca de dez minutos e cujas raras palavras faladas não são legendadas propositadamente, parece absolutamente hiperativo.


A destilação da forma de Tsai corresponde a uma busca por um olhar mais livre sobre o mundo e, mais especificamente, sobre Lee. Muitos dos atores de Rebels, como Miao Tiene Lu Yi-Ching, que interpretam os pais de Hsao-Kiang, e Chen Chao-Jung, que interpreta o seu rival e objeto de obsessão, reapareceriam com regularidade no trabalho futuro de Tsai. A única constante, porém, tem sido Lee, que transitou deste conjunto para a ribalta. Raramente os meios do cinema foram aproveitados para transmitir desejo com tamanha intensidade, e é difícil pensar noutro realizador que tenha explorado o seu desejo tão minuciosamente. Independentemente da natureza da relação entre Tsai e Lee além do ecrã, a sua obra mútua representa uma história de amor eterna—uma que também envolve o espectador, que partilhou as suas emoções filme a filme. Como um sonho Proustiano tornado realidade, Rebels oferece-nos o privilégio de reviver a génese deste amor.

Giovanni Marchini Camia
Giovanni Marchini Camia é um escritor, editor e programadorde cinema que vive em Berlim. É cofundador da FirefliesPress, uma editora especializada em livros sobre cinema,incluindo Memoria by Apichatpong Weerasethakul, Pier PaoloPasolini: Writing on Burning Paper, e a série de monografiasDecadent Editions. A sua crítica cinematográfica foi publicadana Sight & Sound, Film Comment e Cinema Scope, entreoutras, e é membro do comité de seleção de longas-metragensdo Festival de Cinema de Locarno.

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