Raw
Ellen Lima Wassu
31 de Outubro de 2023

Para seu primeiro e premiado longa-metragem, Ducournau elegeu a carne como portal de entrada para nos direcionar ao estado raw de muitas outras camadas daquilo que pode ser estranhado ou naturalizado no comportamento social humano. Afinal, por que perspectivas lemos as violências? O que o canibalismo, como ação prática ou como metáfora, nos pode dizer sobre a noção consolidada de humanidade que conhecemos? E, ainda, como o desejo feminino, o corpo e os ritos de passagem podem apontar para dimensões que evocam o terror?


Justine é uma jovem de família estritamente vegetariana que, ao ingressar na faculdade de veterinária, se vê obrigada a comer carne animal crua durante uma praxe. A partir desse fato, a jovem é constantemente permeada por desejos carnívoros que se relacionam intrinsecamente, ou, no limite, revelam as tensões entre desejo e violência em variadas instâncias, quer seja nos ritos de passagem, nos jogos sociais e sexuais, ou na complexidade das relações familiares.


Essas e outras questões que se constroem no imaginário social ocidental de forma dicotômica, são também apresentadas ao longo da narrativa. Elas se revelam como interrogações a respeito do desejo versus o domínio ou controle dele, a perda da inocência versus uma atitude predadora, o animal versus o humano. Pela forma que a realizadora nos coloca esses questionamentos, somos compulsoriamente provocados a inverter as perspectivas sobre as abordagens de terror e violência. Ducournau tensiona ainda a autonomia sexual feminina como um dado brutal e mortífero, metáfora perfeita de um medo já verificado no pensamento patriarcal do nosso tempo, subvertendo a lógica normativa de gênero sobre poder e dominação.
Na estética da realizadora, todos corpos são indícios. É na angustiante coceira alérgica de Justine que outras camadas se soltam da pele do corpo para pele social — e assim percebemos as nuances da normatização agressiva das peles sociais impostas, as peles dos corpos.


As dicotomias se multiplicam e explodem visualmente quando Raw aponta para a violência consentida e naturalizada
contra a espécie animal em relação hierarquizada com a espécie humana. As cenas do tratamento despendido aos animais na
universidade nos aproximam e explicitam a carne dominada, submetida, violada e dilacerada, fazendo revelar a fragilidade da matéria de modo a mobilizar nossos sentidos de estranhamento e tolerância em relação às violações e mutilações empreendidas sobre determinados corpos.


Não é de hoje que canibalismo, relação prática de algumas espécies de comer seres da mesma espécie, e antropofagia, ato de comer carne humana em contexto ritual, são erroneamente associados no pensamento ocidental, bem como, por vezes, equivocadamente descritos. No contexto de Raw, Ducournau escolhe não tensionar essas noções, mas explicita no comportamento predador de Justine uma aproximação que interroga as fronteiras criadas para dividir as espécies humanas e não humanas.


As perspectivas ritualísticas são, entretanto, afastadas à medida que percebemos que os desejos insaciáveis da jovem foram fabricados através de práticas do seu grupo social, o mesmo que também os condena — fazendo com que a forma de lidar com o insaciável desejo seja dado como um problema individual, evidenciando as contradições da lógica social. Uma vez que, a partir de seus códigos fabricados, determina os “limites” entre aquilo que é socialmente aceito ou aquilo que pode ser considerado um enredo perfeito para um filme de terror.

Ellen Lima Wassu


Ellen Lima Wassu é poeta, ativista e investigadora indígena. É mestra em Artes e doutoranda em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho. Publicou, em 2021, Ixé ygara voltando pra ’y’kûa, livro de poesias escrito em língua portuguesa e tupi antigo, e tem textos publicados em diversas revistas literárias e antologias. Atua nas áreas de arte, cultura e literatura e sua prática relaciona poesia, performance, estudos contracoloniais e escritas ensaísticas.

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