Quatro Canções para Ângelo
Saguenail
3 de Fevereiro de 2024

O olhar do Ângelo

por Saguenail


O real é opaco, o seu sentido escapa-nos. O visível é incompreensível. Não podendo alcançá-lo, temos de o interpretar, extrair imagens, visuais ou verbais, que sejam portadoras de sentido. Com a sua pequena câmara Super 8mm, Ângelo de Sousa filmou objectos e acontecimentos que observou. Para fabricar rastos, mas também imagens — logo para os dotar de significação. Nestes quatro pequenos filmes preservados e digitalizados, singelos registos de amador, vemos o artista percorrer as grandes linhas estéticas e funcionais do cinema dito documental.


1. O Testemunho
No dia 7 de Janeiro de 1976, rebentou uma bomba nas instalações da Árvore, cooperativa de artistas. Ângelo de Sousa, fundador e membro activo da cooperativa, desloca-se, no dia seguinte, até ao local para filmar as imagens da destruição. Primeiro, o grande salão de exposições cujo tecto ruiu fazendo com que o céu se avistasse por entre as traves. A câmara à mão percorre esse espaço cujo aspecto lembra o esqueleto de uma baleia. A seguir, ela passa para uma sala de reuniões da qual restam intactas algumas cadeiras no meio dos escombros. Por fim, enquadra a tabuleta ao lado da inscrição “uma bomba explodiu na Árvore, por isso explodiu em todo o país”, afirmação da continuidade do empreendimento apesar do ataque de que foi vítima. A Revolução dos Cravos fica na história como aquela que aconteceu sem derramamento de sangue. Ângelo filma a provada reacção violenta que a seguir eclodiu. Dever de memória.


2. A Interrogação
Ao longo de semanas, porventura meses, Ângelo filmou o tapume coberto de cartazes em redor do estaleiro de um prédio em construção em frente à sua casa, numa esquina da Rua da Alegria. Trata-se de uma publicidade para o Ambre Solaire, com uma mulher de maillot vermelho bronzeada, provavelmente deitada numa prancha de surf mas colocada na vertical no cartaz, brandindo, qual tocha da liberdade, o frasco de loção. Além disso, o cartaz repete-se, preenchendo todo o tapume, e o convite erótico da rapariga multiplica-se até à esquina. Ângelo filma os transeuntes que passam pelo tapume sem se deterem. A maioria contrasta com o reclame: mulheres que transportam cargas na cabeça; burguesas maduras com cabelos meticulosamente ondulados. Alguns peões quedam-se na esquina, imóveis e aparentemente indiferentes. As tomadas de vista sucedem-se, sem alterações, dia após dia, até a série de cartazes ser substituída por outro modelo — que publicita a mesma marca — com uma mulher um pouco mais bronzeada, biquíni cor de laranja, tranças de um louro contrastante com a cor da pele. Só as crianças parecem prestar-lhe atenção, todavia a figura terá desencadeado uma reacção, pois os cartazes foram rasgados e um colador acaba de os substituir zelosamente por metades, orgulhoso por ter restaurado a beleza. Cotejar esta afixação de figuras quase celestes com habitantes trabalhadores ou atarefados é, por si só, questionar o meio ambiente e o estado de sociedade.


3. A Participação
A pretensa “maioria silenciosa” foi sempre o álibi dos governos conservadores ou ditatoriais. A 28 de Setembro de 1974, a tentativa de golpe de estado reaccionário com vista à interrupção do processo revolucionário falhou por um triz. No dia seguinte, a multidão saiu à rua para defender as conquistas da revolução. Ângelo, anti-fascista de longa data, participa na manifestação. Filma o comício popular que começa diante da Câmara Municipal do Porto, prosseguindo depois frente ao quartel da Praça da República. O cineasta faz questão de mostrar que os diversos partidos de esquerda — MDP, Partido Comunista e Partido Socialista—podem juntar-se, as suas bandeiras unidas perante a bandeira nacional (aliás, as bandeiras introduzem um motivo vermelho quase abstracto nas imagens ondulantes da multidão) e ser unânimes quando os punhos se levantam. Já então a “geringonça” era possível... O som não foi gravado mas o espectador dá-se conta de que a manifestação se desenrola pacificamente. Os curiosos às janelas parecem partilhar o entusiasmo da multidão, mesmo os soldados se acotovelam às janelas do quartel. Ângelo também se esforça por mostrar, em campo-contracampo, a reacção de soldados perante a multidão, primeiro mantendo briosa e rigidamente a postura de guardas, depois deixando passar alguns manifestantes e permitindo-lhes que, do alto do terraço, acima do pórtico do quartel, se dirijam à multidão. Ângelo remata a sua curta-metragem filmando crianças a correr e brincar no jardim, imagem feliz que traduz o alívio e a esperança de uma população que deseja o efectivo fim de toda a ditadura.


4. A Inspiração
A 29 de Janeiro de 1975, um petroleiro dinamarquês esbarra num rochedo à chegada ao porto e naufraga. A casa das máquinas explode no porão, uma parte da carga incendeia-se — o resto tingirá de luto as praias nos dias seguintes. O casco acaba por quebrar e a proa deriva até ao Castelo do Queijo, encalhando em frente ao edifício. Ângelo foi imediatamente filmar a tragédia. Começa por registar o espectáculo do navio em chamas do qual se liberta uma coluna de fumo negro da largura de um prédio e que se eleva até 100 metros de altura. Depois, quando a noite cai, as chamas formam um friso acima das águas, perdendo totalmente a sua realidade material, passando a ser um motivo pictórico abstracto dançante, rubro e ruço sobre um fundo negro. No dia seguinte, Ângelo desloca-se até ao Castelo do Queijo, diante do qual se ergue a proa derrubada, e filma os mirones no areal a observar o espectáculo insólito da pirâmide de aço a emergir da água — que estruturalmente recorda as esculturas do artista nas quais os anéis irregulares recortados em folhas de metal evocam simultaneamente corpos vagamente cilíndricos e a sua decomposição em fatias. Após o que se detém no lençol negro de nafta que se derrama sobre os seixos. Surpreendentemente, e talvez inconscientemente do ponto de vista do autor, este pequeno filme mapeia a passagem da existência real à representação icónica, da figuração à abstracção, dos objectos identificáveis aos elementos estritamente pictóricos — formas e borrões de cor — em conformidade com a própria estética que Ângelo desenvolveu ao longo da sua obra, tal como a descobrimos aquando da sua retrospectiva no Museu de Serralves: de esquisso em esquisso, a evolução da representação duma árvore até a um simples amontoado de linhas ou de uma folhagem, até a uma constelação de manchas coloridas. Ou seja, da figuração à abstracção, da matéria à ideia.

Saguenail

Doutorado em Cinema e Pedagogia pela Universidade de Provence (França), Serge Abramovici (Saguenail) lecionou língua francesa, pedagogia, literatura e cinema na UM, na ESMAE, na ESAP e na FLUP. É autor de meia centena de livros (poesia, ficção, ensaio) e de uma vasta filmografia (mais de 40 títulos, alguns em parceria com Regina Guimarães). Fundou a revista A Grande Ilusão e a associação Os Filhos de Lumière. Foi programador do ciclo O Sabor do Cinema, no Museu de Serralves (2002–2013). Atualmente, anima o programa Literama e Cinetura. É membro-fundador do Centro Mário Dionísio/Casa da Achada.

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