O mal da banalidade
Quando, após meia dúzia de anos a realizar séries televisivas e semi-documentários para televisão, Ken Loach se lança na realização cinematográfica, o cineasta representa a charneira entre o Free Cinema — Tony Richardson, Lindsay Anderson e Karel Reisz — e o cinema naturalista britânico dos anos 70/80 — Mike Leigh, Stephen Frears... Antes de afirmar o seu engajamento político e filosófico — marxista e internacionalista —, o primeiro filme não televisivo da sua autoria, Poor Cow, de 1967, embora não tenha obtido o sucesso e os ditirâmbicos elogios críticos do seguinte — "Kes", de 1969 —,afirma um estilo e uma ruptura relativamente aos códigos do cinema narrativo em curso na época — antes das oposições radicais que rebentaram a seguir a Maio de 68, primeiro em França e depois em toda a Europa. Em "Poor Cow" ainda se reconhece a marca da escola da televisão — montagem rápida de grandes planos de rostos ou de cenários urbanos para sugerir ambientes. Sobretudo, o filme compreende a narração em voz off — na primeira pessoa — dos diversos episódios da saga da protagonista, que culmina com as declarações em grande plano frontal — característica das entrevistas televisivas — que servem de remate, deixando toda e qualquer conclusão em suspenso: o filme não desemboca num final, nem feliz nem trágico. É, aliás, essa ausência de dramatismo que constitui a originalidade essencial da obra. Joy, que possui todos os traços do “sex symbol” e se parece com Brigitte Bardot quando arvora uma expressão amuada, pode simultaneamente escrever uma carta de amor ardente a Dave e ir para a cama com um desconhecido, temer, ou mesmo odiar, Tom e aceitar reconciliar-se provisoriamente com ele, etc. Por outras palavras: Ken Loach encena e evidencia as contradições das suas personagens, que sofrem mas não mudam, incapazes de decisões radicais ou de tomar em mãos os seus destinos. Por detrás das aventuras muito banais destas três personagens — roubo, detenção, condenação, prisão no caso de Dave e Tom, biscates vários e “promiscuidade sexual” no caso de Joy —, Ken Loach empreende uma análise social e crítica dos meios desfavorecidos e da condição feminina. Tom é o protótipo perfeito do machista, incapaz de se levantar para aumentar o volume sonoro da televisão se tiver a sua mulher por perto, logo susceptível de o fazer... Todos prezam o dinheiro mais do que qualquer outro valor e, para obter dinheiro, não hesitam em renegar todos os códigos morais. Todos são profundamente incapazes de modificar os seus comportamentos, embora tenham consciência do beco sem saída a que os hábitos e a preguiça os conduzem — a prisão por reincidência —, ou, retrospectivamente, da frugalidade dos ingredientes necessários para um momento de felicidade: o beijo sob a cascata galesa é filmado como o famoso amplexo Mastroianni/Ekberg dentro da fonte de Trevi em La DolceVita. No fim de contas, é a contenção que caracteriza o estilo introduzido por Ken Loach no cinema britânico politicamente comprometido dos anos 60: nada de lágrimas, nada de gritos, agressões recebidas como se a violência e o sofrimento fossem naturais, como se as personagens só tivessem de se vergar à sua condição (de pobre, de mulher...) num universo em que a felicidade, inalcançável, consiste tão-somente num copo, numa roupa, numa jóia. No entanto, a um nível mais profundo, o filme joga com os códigos, há muito assimilados pelos espectadores, do cinema corrente: as personagens— os actores — são, fotogénica e convencionalmente, belos: Carol White, amiúde comparada a Julie Christie e morta por overdose; John Bindon, cuja carreira não resiste aos seus comprovados contactos com a escumalha, que acabam por levá-lo a tribunal; só Terence Stamp conseguirá fazer uma carreira internacional — mas, em entrevistas posteriores, chega a afirmar que deplora o facto de Ken Loach não ter aprofundado a psicologia da personagem oriunda dum meio desfavorecido que fora precisamente aquele em que o actor crescera. É através desse desfasamento entre a fotogenia — genericamente aliada aos dourados e à riqueza — e as condições de vida miseráveis, ou, pelo menos, precárias — Joy é sucessivas vezes obrigada a desfazer-se de todos os objectos que mobilam o apartamento onde se encontra efemeramente instalada — que o cineasta, sem ter de carregar na tecla do pathos, transmite a sua mensagem política: as classes desfavorecidas não se distinguem por uma fisicalidade ou um conjunto de capacidades — no máximo, pela linguagem, que Joy gostaria de aperfeiçoar, a fim de poder frequentar outros meios sem se sentir embaraçada — mas antes por um habituse um “horizonte de expectativas”. Será preciso um incidente — o total desinteresse de Tom pelo seu filho — e um momento de pânico — a buscada criança no meio dos escombros metafóricos dum mundo a desmoronar-se — para que, no final do filme, um sentimento “natural”, o amor materno, volte à superfície e se torne um critério que permite à protagonista encarar o futuro, enfrentá-lo e tomar decisões quanto ao seu “destino”.
Saguenail
Doutorado em Cinema e Pedagogia pela Universidade de Provence (França), Serge Abramovici (Saguenail) lecionou língua francesa, pedagogia, literatura e cinema na UM, na ESMAE, na ESAP e na FLUP. É autor de meia centena de livros (poesia, ficção, ensaio) e de uma vasta filmografia (mais de 40 títulos, alguns em parceria com Regina Guimarães). Fundou a revista A Grande Ilusão e a associação Os Filhos de Lumière. Foi programador do ciclo O Sabor do Cinema, no Museu de Serralves (2002–2013). Atualmente, anima o programa Literama e Cinetura. É membro-fundador do Centro Mário Dionísio/Casa da Achada.
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