No começo dos anos 1980, no auge das suas atividades enquanto líder do cartel de Medellín, o narcotraficante colombiano Pablo Escobar decidiu criar um parque zoológico no interior da sua vasta propriedade, conhecida como Fazenda Nápoles. Informou-se sobre a fauna mais adaptada ao clima da região e importou ilegalmente diversas espécies exóticas: elefantes, zebras, dromedários, rinocerontes, flamingos e até um casal de papagaios-pretos muito raros. Acolhendo mais de 1200 animais circulando em liberdade, o zoo de Escobar esteve aberto ao público durante vários anos, antes de uma violenta guerra entre diferentes cartéis precipitar a Colômbia numa das fases mais violentas da sua história.
Entre os animais adquiridos por Escobar contavam-se quatro hipopótamos. Ao contrário das girafas, que nunca se conseguiram adaptar, os hipopótamos deram-se particularmente bem no clima subtropical do noroeste da Colômbia. Na ausência de predadores naturais, os seus números foram aumentando, transformando um punhado de espécimenes exóticos numa espécie qualificada de invasora. Segundo as estimativas oficiais, em 2023, cerca de 168 indivíduos viviam no vale do rio Magdalena (o mais extenso rio colombiano). Trata-se da única manada selvagem de hipopótamos fora de África. Pepe, do cineasta dominicano Nelson Carlo de Los Santos Arias, evoca o destino simultaneamente fantástico e trágico de um desses animais. Rememorada na primeira pessoa pelo próprio, a história de Pepe assemelha-se a um relato mitológico. Não só porque, na fábula imaginada por Los Santos Arias, um animal fala, como em tantos outros contos, mas porque o périplo de Pepe, desde a sua vida e captura na Namíbia até ao seu exílio solitário e morte na região de Estación Cocorná, possui a força sugestiva dos mitos. Combinando sequências rodadas em 16mm, passagens de desenhos animados (excertos da série Peter Potamus do estúdio Hana Barbera), imagens de arquivo alusivas à morte de Escobar, gravações amadoras documentando a presença real de hipopótamos no rio Magdalena e imagens realizadas por drones e câmaras térmicas, a própria forma do filme, oscilando entre a cor e o preto-e-branco, remete para a diversidade de contributos de que são feitos os mitos.
Inspirado em espantosos factos reais (os hipopótamos de Escobar fazem parte do seu mito), Pepe prefere a ficção especulativa à exatidão dos registos factuais. Um hipopótamo solitário e agressivo batizado de Pepe (a sua perseguição pelas autoridades, evocando junto da população a verdadeira caça que a milícia “Los Pepes” ou “Perseguidos por Pablo Escobar” votou a este último durante os anos de guerra) existiu de facto, tendo a sua captura e morte chocado a Colômbia, mas isso pouco importa. A figura do animal extirpado à força da sua terra natal, transportado de África até às Américas por razões que nunca compreenderá, impelido à violência para sobreviver e encarado como um monstro por aqueles que se revelam necessariamente incapazes de o aceitar, presta-se a uma reflexão alegórica sobre a história do colonialismo no Sul Global. A escolha de conceder o dom da palavra ao hipopótamo — ou ao seu espírito, uma vez que a voz de Pepe é um rumor fantasmagórico que nos chega do além — é, desse ponto de vista, uma estratégia central do filme. Ao antropocentrismo redutor e exclusivista da racionalidade moderna e colonial, que condena o animal a uma alteridade intransponível, Los Santos Arias contrapõe um animismo lúdico, epitomado na última imagem do filme. Que o espírito de Pepe se exprima perfeitamente em três línguas — o mbukushu da sua Namíbia natal, o africânder e o espanhol colombiano — é perfeitamente lógico: assombrado por uma colonialidade que teima em subsistir, o seu mito é necessariamente poliglota.
Seguindo uma vaga linha cronológica, desde a infância de Pepe até à sua morte, o filme de Los Santos Arias foi parcialmente rodado com atores não profissionais na povoação de Puerto Triunfo, na região de Estación Cocorná. A história de Pepe confunde-se aqui com uma reflexão mais vasta sobre a figura do macho dominante e a forma como a colonização das subjetividades alimenta o sistema de violência e de exclusão evocado no filme. A presença discreta, mas significativa, de várias crianças em Pepe recorda-nos que essa colonização se ataca, antes de mais, através da imaginação e da capacidade de pensar o mundo sem diferenças e desigualdades, inclusive entre humanos e animais. Para Los Santos Arias, o poder do cinema reside precisamente na sua capacidade de libertar a imaginação. É essa faculdade, logicamente avessa a convenções formais e narrativas, que Pepe se propõe celebrar.
Teresa Castro
Historiadora e teórica do cinema e das imagens, Teresa Castro é professora no Departamento de Estudos Cinematográficos da Université Sorbonne Nouvelle. O seu trabalho mais recente concentra-se nas abordagens ecológicas e ambientais do cinema e da cultura visual contemporânea. Paralelamente, desenvolve também crítica e programação.
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