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O Último Banho
Alexandra João Martins
12 de Dezembro de 2023

O banho, entendido na matriz judaico-cristã como momento de purificação e sacramento, é o elemento central da narrativa desta longa-metragem do realizador português David Bonneville. Mas, na impossibilidade de se fugir à profanidade de um corpo — ainda que se trate de um corpo imberbe, quase imaculado, do jovem Alexandre (Martim Canavarro) —, é também o momento em que as pulsões e os desejos se vão revelando. É sob o signo da morte do avô que Alexandre é deixado ao cuidado de sua tia, Josefina (Anabela Moreira), regressada então à aldeia para comparecer ao funeral. No encalço dos votos perpétuos, a noviça procura moldar-se pelos hábitos religiosos, mas, sobretudo, por uma moralidade obscurantista guiada pela prática da penitência, revelada, enfim, pelas feridas provocadas pelo cilício, instrumento de mortificação que coloca na coxa.

 

Se é certo que a paisagem do Douro e a figura de Anabela Moreira ornamentada por um chapéu de palha caminhando entre as árvores não deixam escapar as afinidades do realizador com Manoel de Oliveira, designadamente com Leonor Silveira em Vale Abraão (1993), a presença das irmãs Moreira e a tendência para uma certa dramaturgia da violência — para usar a expressão de Daniel Ribas (2019) — aproximam-no, em particular, do realismo de João Canijo. Ao constituir paralelamente uma reflexão em torno da identidade nacional (para lá da obsessão do jovem com Cristiano Ronaldo, de quem veste a camisola e de quem ostenta um póster no quarto), dos resquícios do salazarismo e da incapacidade de nos inscrevermos, como diria José Gil, o filme prossegue ainda esse filão da mais recente história do cinema português que tem como matéria principal o órfão metafórico ou literal — um país sem pais.

 

A atmosfera soturna desta religiosidade, entre cruzes, credos e rosários, é atravessada por um jogo de corpos ora abandonados ao tédio, ora ao cansaço, que a câmara revela com particular sensualidade em planos de aproximação ou detalhe — como acontece com Josefina estendida no sofá ou Alexandre deitado na cama — e em grandes planos dos rostos. Paralelamente ao coming-of-age de Alexandre, em cuja densidade não se chega a penetrar, mas onde se vislumbram os amigos, as primeiras saídas nocturnas, a feira popular ou os jogos de futebol, há o coming of de Josefina que se entrega, por fim, não sem mácula, não sem dúvida ou resistência, às pulsões da carne às mãos de um homem desconhecido. Na impossibilidade moral de consumar com o corpo desejado, fá-lo com um despojamento tal, como se de um outro gesto sacrificial se tratasse. Eis o meu corpo, tomai-o e libertai-me.

 

Aliás, uma das primeiras cenas do filme é aquela em que Josefina lava graciosamente os pés chagados de Alexandre, reencenando um dos rituais cristãos mais conhecidos. O que explica a aproximação a Canijo mais do que a Oliveira talvez seja tratar-se sobretudo de um filme de corpos, mais do que de um filme de palavra. No derradeiro encontro com a sua irmã Ângela (Margarida Moreira), que pretende agora retomar a guarda do filho, o princípio de identidade entre os dois corpos é subvertido pela diferença dos modos: Ângela enverga um vestido vermelho decotado e, com destreza, abraça a irmã; já Josefina, vestindo a bata e o chapéu habituais, resiste, como um corpo proscrito. Qual Janus, as irmãs representam, então, duas faces de uma mesma moeda: a voluptuosidade do corpo, por um lado, a vocação espiritual, por outro.

 

Mas a voluptuosidade do corpo é também, em O Último Banho, a voluptuosidade da paisagem curvilínea dos socalcos vinhateiros e, nesse sentido, as primeiras sequências do filme são já reveladoras. Com elevado sentido formal, Bonneville filma um conjunto de planos gerais da herdade em que se vislumbra o corpo de Martim — feito elemento de raccord — a correr entre as vinhas, até que dele se vai aproximando para, no fim, particularizar a mão ensanguentada, ferida que resulta de uma queda entre patamares. Em poucos minutos, o realizador move-se entre o corpo geral paisagem e o pormenor do corpo do jovem, num elogio da montagem que descerra o movimento de fuga indeterminada de Martim, que nunca deixará de estar presente — por fim, fugirá para junto da mãe para logo depois regressar. Também de fuga é o movimento de Josefina que, após o encontro casual motivado pela ausência do sobrinho, surge violentada ao escapar pelo mato em direcção à herdade. É então que se cruza com Martim, também ele regressado, que a acolhe em braços na soleira da porta, invertendo a figura tradicional da Pietà: o corpo jovem imaculado recebe o corpo sacrificado, numa retribuição dos gestos de hospitalidade.


O autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.

Alexandra João Martins

Licenciada em Ciências da Comunicação, mestre em Estudos Artísticos pela Universidade do Porto, e doutoranda em Estudos Artísticos na FCSH-Universidade Nova de Lisboa, tendo sido bolseira da FCT. Escreveu para diversas publicações. Colaborou e integrou os comités de seleção dos festivais Curtas Vila do Conde e Porto/Post/Doc. Em 2017, foi selecionada para o Talent Press Rio e, em 2018, comissariou a exposição Como o Sol/Como a Noite, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito da retrospetiva dedicada a António Reis e Margarida Cordeiro no Porto/Post/Doc.

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