No Place For Fools

Fernando José Pereira
19 de Outubro de 2025

A Revolução Soviética, nos seus tempos iniciais, colocou o nós da utopia como palavra-chave. Um nós que era acompanhado por artistas, cineastas, fazedores de imagens. Imagens utópicas como as dos construtivismos vários. Da abstracção pictórica a testar os limites; das experimentações com o tempo do cinema em Eisenstein ou Vertov. O paralelo imagético radical da arte à utopia radical social em curso. Como é conhecido e sabido, no entanto, as utopias não se concretizam. Quando o tentam, de imediato se aniquilam. Como se aniquilou o nós utópico, sendo substituído pelo eles distópico que se seguiu durante décadas. Eles, os que discordam. Eles, os que são diferentes. Eles, os que preferem o nós.

No final do século XX, a distopia desmoronou-se, implodiu.

A esperança do nós voltou e, contudo, esse era o mais infundado dos sentimentos. O capitalismo alargou o território, tornou-se global e a distopia lentamente transformou-se em aporia: já não existe o nós, já não existe o eles, agora a única manifestação possível é a do eu. Um eu tecnologizado por aparelhos digitais que o encerram numa deriva narcísica de que hoje somos testemunhas. A vida envolveu-se com a tecnologia digital miniaturizada no uso comum dos telemóveis. O quotidiano está deslumbrado com a possibilidade do seu uso quase como uma prótese. Parece já fazer parte intrínseca do corpo.

Na Rússia actual, a cruz suprematista de Malevich foi substituída pela cruz do cristianismo ortodoxo. A utopia internacionalista do nós foi substituída pela aporia fundamentalista e nacionalista do eu. A mistura é explosiva e errática. E, para além de tudo isto, perigosa.

Os perigos que a deriva narcísica contemporânea produz envolvem sempre uma relação mediada pela tecnologia. Hoje encontramos uma espécie de hikikomoris tecnológicos, já não encerrados nos seus quartos, mas no interior dos telemóveis, a partir dos quais comunicam com a abstracção em que se tornou o outro, corporizado em número de likes recebidos.

Sabemos, conhecemos exemplos das várias manifestações deste tipo de pseudo-comunicação. Da glorificação da violência à mais retrógrada visão religiosa do mundo e da realidade.

O paradoxo aporético é quase demencial nas suas camadas significacionais sobrepostas e em oposição. Camadas superficiais que se apoiam na genérica noção de “global”, representada pela sua vertente mais visível e sedutora — o consumismo —, acompanhadas de outras mais profundas e sinistras, onde o fundamentalismo religioso, o nacionalismo, o ódio e a xenofobia dominam largamente.

Os planos contra-picados das pequenas câmaras frontais dos dispositivos móveis, apesar da acesa disputa entre fabricantes — os telemóveis, hoje, anunciam-se não como dispositivos de conversação, mas como aparelhos munidos de câmaras de reprodução do real—, mantêm uma distorção da imagem que é acentuada pela proximidade. A distorção produzida provoca, deste modo, uma espécie de efeito de repulsa perante a forma grotesca que se dá a observar. E, contudo, a pulsão narcísica inibe a visão. Porque é mais forte.

Porque, pretensamente, é dominadora, tem opinião.

Porque tem coragem para partilhá-la.

A sociedade contemporânea está refém do deslumbramento maquínico. Talvez por isso não consiga ver a tragédia que a envolve e esmaga. A violência, as guerras, as agressões, os insultos vulgarizaram-se, banalizaram-se. As imagens reproduzem-se aos milhões por dia, encerradas num qualquer aterro digital onde encontram o seu fim, numa qualquer nuvem, depois da sua existência efémera.

A pretensa democratização da imagem e da comunicação é apenas a versão politicamente correcta de um mais profundo e perigoso populismo que ameaça e já provoca danos.

Suicídios filmados em directo, desastres em que interessa mais filmar o acidente do que ajudar, imagens extraordinárias transfiguradas em imagens ordinárias, banais.

A imposição totalitária do like assim o determina.

Por isso, as imagens dos artistas, dos cineastas têm de ser, hoje, o resultado selectivo desse lixo imagético que se transformou numa outra forma de poluição da qual ainda não conhecemos as consequências.

As escolhas possibilitam a montagem. A montagem potencia o filme. O filme quer provocar ressonância nos espectadores. Só o conseguirá se escapar à homogeneidade imagética do presente.

Daí a sua importância.

O cinema, os filmes, ao proporcionarem a ideia de comunidade, de partilha, são objectos resistentes ao eu narcísico. São veículos privilegiados para observarmos a realidade, esta realidade.

Devem, por isso, ser acarinhados. Fazem parte do nós colectivo porque nos colocam questões. Fazem pensar. Abandonar a banalidade. Dão-nos tempo para ter tempo.

Não necessitam de likes.

Nós gostamos. Porque não somos tolos.

E isto é mesmo verdade.

Fernando José Pereira
Fernando José Pereira (Porto, 1961) é licenciado em Pintura pela Universidade do Porto e Doutor em Belas Artes pela Universidade de Vigo. Desde os anos 90, desenvolve uma prática artística na qual se destaca a utilização do vídeo. Enquanto membro do coletivo de música eletrónica experimental Haarvöl, tem vindo, mais recentemente, a explorar a relação entre o vídeo e a música. A sua obra integra as coleções da Fundação de Serralves, do Centro Galego de Arte Contemporânea e da Fundação Calouste Gulbenkian, entre outros.

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