A Revolução Soviética, nos seus tempos iniciais, colocou o nós da utopia como palavra-chave. Um nós que era acompanhado por artistas, cineastas, fazedores de imagens. Imagens utópicas como as dos construtivismos vários. Da abstracção pictórica a testar os limites; das experimentações com o tempo do cinema em Eisenstein ou Vertov. O paralelo imagético radical da arte à utopia radical social em curso. Como é conhecido e sabido, no entanto, as utopias não se concretizam. Quando o tentam, de imediato se aniquilam. Como se aniquilou o nós utópico, sendo substituído pelo eles distópico que se seguiu durante décadas. Eles, os que discordam. Eles, os que são diferentes. Eles, os que preferem o nós.
No final do século XX, a distopia desmoronou-se, implodiu.
A esperança do nós voltou e, contudo, esse era o mais infundado dos sentimentos. O capitalismo alargou o território, tornou-se global e a distopia lentamente transformou-se em aporia: já não existe o nós, já não existe o eles, agora a única manifestação possível é a do eu. Um eu tecnologizado por aparelhos digitais que o encerram numa deriva narcísica de que hoje somos testemunhas. A vida envolveu-se com a tecnologia digital miniaturizada no uso comum dos telemóveis. O quotidiano está deslumbrado com a possibilidade do seu uso quase como uma prótese. Parece já fazer parte intrínseca do corpo.
Na Rússia actual, a cruz suprematista de Malevich foi substituída pela cruz do cristianismo ortodoxo. A utopia internacionalista do nós foi substituída pela aporia fundamentalista e nacionalista do eu. A mistura é explosiva e errática. E, para além de tudo isto, perigosa.
Os perigos que a deriva narcísica contemporânea produz envolvem sempre uma relação mediada pela tecnologia. Hoje encontramos uma espécie de hikikomoris tecnológicos, já não encerrados nos seus quartos, mas no interior dos telemóveis, a partir dos quais comunicam com a abstracção em que se tornou o outro, corporizado em número de likes recebidos.
Sabemos, conhecemos exemplos das várias manifestações deste tipo de pseudo-comunicação. Da glorificação da violência à mais retrógrada visão religiosa do mundo e da realidade.
O paradoxo aporético é quase demencial nas suas camadas significacionais sobrepostas e em oposição. Camadas superficiais que se apoiam na genérica noção de “global”, representada pela sua vertente mais visível e sedutora — o consumismo —, acompanhadas de outras mais profundas e sinistras, onde o fundamentalismo religioso, o nacionalismo, o ódio e a xenofobia dominam largamente.
Os planos contra-picados das pequenas câmaras frontais dos dispositivos móveis, apesar da acesa disputa entre fabricantes — os telemóveis, hoje, anunciam-se não como dispositivos de conversação, mas como aparelhos munidos de câmaras de reprodução do real—, mantêm uma distorção da imagem que é acentuada pela proximidade. A distorção produzida provoca, deste modo, uma espécie de efeito de repulsa perante a forma grotesca que se dá a observar. E, contudo, a pulsão narcísica inibe a visão. Porque é mais forte.
Porque, pretensamente, é dominadora, tem opinião.
Porque tem coragem para partilhá-la.
A sociedade contemporânea está refém do deslumbramento maquínico. Talvez por isso não consiga ver a tragédia que a envolve e esmaga. A violência, as guerras, as agressões, os insultos vulgarizaram-se, banalizaram-se. As imagens reproduzem-se aos milhões por dia, encerradas num qualquer aterro digital onde encontram o seu fim, numa qualquer nuvem, depois da sua existência efémera.
A pretensa democratização da imagem e da comunicação é apenas a versão politicamente correcta de um mais profundo e perigoso populismo que ameaça e já provoca danos.
Suicídios filmados em directo, desastres em que interessa mais filmar o acidente do que ajudar, imagens extraordinárias transfiguradas em imagens ordinárias, banais.
A imposição totalitária do like assim o determina.
Por isso, as imagens dos artistas, dos cineastas têm de ser, hoje, o resultado selectivo desse lixo imagético que se transformou numa outra forma de poluição da qual ainda não conhecemos as consequências.
As escolhas possibilitam a montagem. A montagem potencia o filme. O filme quer provocar ressonância nos espectadores. Só o conseguirá se escapar à homogeneidade imagética do presente.
Daí a sua importância.
O cinema, os filmes, ao proporcionarem a ideia de comunidade, de partilha, são objectos resistentes ao eu narcísico. São veículos privilegiados para observarmos a realidade, esta realidade.
Devem, por isso, ser acarinhados. Fazem parte do nós colectivo porque nos colocam questões. Fazem pensar. Abandonar a banalidade. Dão-nos tempo para ter tempo.
Não necessitam de likes.
Nós gostamos. Porque não somos tolos.
E isto é mesmo verdade.
Fernando José Pereira
Fernando José Pereira (Porto, 1961) é licenciado em Pintura pela Universidade do Porto e Doutor em Belas Artes pela Universidade de Vigo. Desde os anos 90, desenvolve uma prática artística na qual se destaca a utilização do vídeo. Enquanto membro do coletivo de música eletrónica experimental Haarvöl, tem vindo, mais recentemente, a explorar a relação entre o vídeo e a música. A sua obra integra as coleções da Fundação de Serralves, do Centro Galego de Arte Contemporânea e da Fundação Calouste Gulbenkian, entre outros.
©2025 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits by LOBA