morte, literatura, insectos e espanha — quantos livros se poderiam reunir em torno destas quatro palavras? livros que se escreveram por contágio, que se desdobram uns nos outros. livros que se tornaram corpos e corpos que se tornaram livros — deixando de ser corpos e livros, passando a ser híbridos.
ao contrário do que disse marguerite duras — que, porque escreve, um escritor não tem vida (“escrever é não ser ninguém. um morto, como dizia thomas mann”) —, morvern callar, não por escrever, mas através da escrita, ganha uma nova vida.
a escrita, neste caso, não é produção ou fixação, mas legado. o escritor é, de facto, um morto. no entanto, obtendo outro nome, obtém uma nova identidade e, consequentemente, um novo corpo, e também uma nova vida. o morto torna-se ghost writer. e morvern torna-se autora — porque, às vezes, ser autor não é uma consequência do acto de escrever, é habitar o lugar da escrita.
não será por acaso que ela vai para espanha — lugar da escrita por excelência, por ser também o lugar da morte: país de santos barrocos, torturados, de místicos, de cristos em carne viva, de touros trespassados por espadas diante de multidões extasiadas, do flamenco — das seguiriyas, lentas, fúnebres e melancólicas —, tudo coberto de sangue. a espanha que fascinou bataille, hemingway, cioran — “porque”, como escreveu este último, “oferecia o mais espectacular exemplo do fracasso. o maior país do mundo reduzido a tal estado de decadência”. e o fracasso atravessa tudo — todas as grandes ideias podem ruir. livros, filmes, instituições, amores, sistemas políticos — tudo pode falhar. e falha. a grandeza não está imune à decomposição.
a nota de suicídio que o namorado de morvern lhe deixa diz: “escrevi-o para ti.” e ela parece decidir encarar literalmente essas palavras — passando por cima da possível fama póstuma dele. não é óbvio o que a move. e o filme parece recusar dar explicações. o seu silêncio é mais eloquente do que qualquer declaração. o que faz não parece resultar de um plano, embora também o seja — é mais uma intuição, uma espécie de transfiguração. há, nas suas acções, uma certa sofisticação. um tipo de calma e de coragem que não se encaixa em gestos heróicos. não há drama, apenas um prolongado estado de presença. morvern é um reflexo ripleyano (embora não minta como ele, ela esquiva-se) pela capacidade de precisão, de distanciamento, de absorção e recriação de outra vida. não são apenas impostores — são também autores. só que se servem de outros meios para escrever. escrevem com o corpo todo, transformam a ausência em narrativa. ou seja, escrevem com actos — mais através do gesto do que da linguagem.
ainda literatura, ainda morte: não consigo não pensar em kafka — que escreveu notoriamente sobre alguém que acorda transformado em insecto — quando morvern segue uma barata pelos corredores do hotel até encontrar outra espécie de reflexo: alguém também em processo de luto. a barata como fio condutor — uma linha que liga dois corpos tocados pela morte. e ainda lispector: “a barata e eu somos infernalmente livres porque a nossa matéria viva é maior que nós, somos infernalmente livres porque a minha própria vida é tão pouco cabível dentro do meu corpo que não consigo usá-la. a minha vida é mais usada pela terra do que por mim, sou tão maior do que aquilo que eu chamava de ‘eu’ que, somente tendo a vida do mundo, eu me teria.”
aquilo que, noutras mãos, seria um crime, aqui é uma forma de sobrevivência. talvez seja importante não esquecer que, antes de ser um filme, morvern callar foi (e continua a ser) um livro — escrito por alan warner — e que esse livro espelha a precariedade do mundo que retrata. como o professor romain nguyen van sugeriu, num artigo que escreveu sobre morvern callar, trata-se de um romance que expõe a neoliberalização da vida a partir de dentro: onde o trabalho, o corpo e a linguagem habitam um mesmo território instável e precário — sem comunidade, sem apoio. apenas fragmentos. divisões. silêncios.
a verdade é que o dinheiro que o namorado tinha na conta, e o dinheiro que depois recebe como avanço da publicação do livro, permite que morvern saia da pobreza e do provincianismo — coisa que ela, ao contrário da sua melhor amiga, quer, de facto, fazer.
morvern callar é um livro que alguém escreveu, é um livro dentro de um livro que encarnou, é também um filme, uma personagem, uma actriz — por se fazer passar por autora — e um insecto que descobre que pode ser livre. prática e infernalmente livre.
miguel bonnevillemiguel bonneville introduz-nos a histórias autoficcionais, centradas na desconstrução e reconstrução da identidade, através de obras que cruzam múltiplas áreas artísticas. Realizou filmes como Traça (2016), Um medo com duas grandes faces (2022), e Camera obscura (2023). Publicou os livros Ensaios de santidade (Sr. Teste, 2021), O pessoal é político (Douda Correria, 2021), e ainda as edições de artista Jérôme, Olivier et moi (Homesession, 2008), Notas de um primata suicida (2017), e, através do Teatro do Silêncio, Dissecação de um cisne (2018), Lamento do ciborgue (2021), Recuperar o corpo (2021) e Câmara escura (2022).
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