Stereo, David Cronenberg
Lendl Barcelos
8 de Setembro de 2023

Um Amor que Tudo Devora

Stereo, lançado em 1969, é a longa-metragem de estreia de David Cronenberg. Este filme experimental dá a impressão de que estamos a testemunhar a documentação dos ensaios parapsicológicos descritos pelos narradores; ou, dado o título original do filme, Stereo (Tile 3B a CAEE Educational Mosaic), de que nos encontramos talvez a assistir diretamente ao material de formação criado pela Academia Canadiana para a Investigação Erótica (Canadian Academy for Erotic Enquiry, CAEE), com a intenção de induzir a coesão telepática de grupo e a autonomia.

No contexto do Verão do Amor e das marés vivas da revolução sexual dos anos 60, Stereo origina uma reviravolta especulativa e obscura sobre os conceitos de coletivismo e libertação. Conduz o comunismo psicadélico em direção a uma das suas conclusões radicais: a total assimilação psíquica. Uma das reivindicação da CAEE, cujo lema é amor vincit omnia (o amor vence tudo), é que as normas da hetero e da homossexualidade são ambas perversões de uma omnisexualidade sem limites, e que através do uso de afrodisíacos sintéticos (que aparecem no filme como comprimidos), pode atingir-se uma espécie de “situação social telepática”. Esta comunhão telepática, em que o individuo capitalista se encontra totalmente dissolvido, pode ser vista como uma exploração metafórica do comunismo, embora de uma forma altamente abstrata e pouco convencional. No comunismo tradicional, a ênfase encontra-se na propriedade coletiva e nos recursos partilhados, e na luta por uma sociedade em que as necessidades de todos são satisfeitas. Em Stereo, os laços telepáticos representam uma consciência profunda e partilhada onde os pensamentos, as emoções e as experiências são vividas comunalmente. A ideia de “pensamentos privados” ou “experiências individuais” desintegra-se, e os indivíduos tornam-se parte de um todo integrado. Contudo, descobrimos que nem todas as reações a esta desindividualização, a este amor abrangente, são visões eufóricas de utopia. Dois sujeitos cometem suicídio como resposta. Outro recorre à trepanação para se aliviar das pressões mentais. Um outro individuo usa a “partição esquizofonética” para criar uma total divisão entre o seu falso eu psíquico e o seu verdadeiro eu auditivo, resultando na disjunção completa entre o seu discurso e o seu pensamento, e no consequente consumo do seu eu vocal pelo seu “falso eu telepático”.

O que distingue Stereo é a sua utilização ousada do silêncio: não existe som sincronizado, nem banda sonora. O único áudio presente são as vozes didáticas dos narradores. Dadas as ideias de percepção extrassensorial no filme, é possível que Cronenberg esteja a tentar fazer experiências com o silêncio enquanto modo de comunicação telepática. Curiosamente, o filme faz alusão ao potencial de comunicação telepática através do silêncio. Vemos uma chupeta ser partilhada entre alguns dos sujeitos: um meio literal de parar os sons feitos por uma boca, e talvez intensificar a capacidade psíquica. Mais, é uma noção que ganha tração quando consideramos que duas das personagens dentro da narrativa passam por uma transformação peculiar: a remoção das suas laringes, tornando-as mudas e incapazes de falar (no sentido convencional). Ainda assim, na ausência de comunicação vocal, entram numa “telepatia induzida”, sugerindo que o silêncio, longe de ser um vazio, pode ser um terreno fértil para o desabrochar de ligações telepáticas. Como sabemos, corpos silenciosos podem esconder uma mente ativa.

Na sua essência, Stereo é um exercício de dualidade narrativa, uma trança de duas sequências paralelas que se contaminam numa dança complexa. Por um lado, temos os variados encontros entre sete pessoas que não parecem proceder de nenhuma forma lógica. (Talvez devêssemos imaginar a mencionada oitava "sujeito de Categoria A" como o próprio Cronenberg.) Por outro lado, somos confrontados com a narração científica monótona. Proferida por múltiplas vozes, esta narrativa elucida os conceitos existenciais-orgânicos de Luther Stringfellow e narra as experiências parapsicológicas que conduziu dentro da CAEE. A discórdia entre a linguagem complexa que ouvimos e as imagens a preto-e-branco visualmente austeras que vemos amplifica a sensação de dissonância cognitiva. Aquilo com que Cronenberg está a experimentar aqui é um estéreo especificamente audiovisual — não estereoscópico, nem estereofónico — que permite um filme emergente onde o sentido é fabricado algures entre o fónico e o óptico.

Stereo é um puzzle cinematográfico cerebral que acena aos espetadores para que transcendam as fronteiras da narração tradicional. É uma experiência audaciosa que desafia as nossas percepções e que nos convida a explorar os corredores enigmáticos da mente expandida. À medida em que navegamos a intrincada teia de narrativas, tornamo-nos não apenas espectadores, mas participantes ativos nas explorações hipnóticas de Cronenberg da psique humana, e da sua expansão potencial para um comunismo telepático (que correu mal).

Lendl Barcelos

Artista, “katafísico” e DJ, Lendl Barcelos explora as matérias vibratórias, muitas vezes da dimensão aural, mesmo quando estas ocorrem para além dos limites humanos normativos. Ao lado de Tarek Atoui, Allison O’Daniel, Myriam Lefkowitz & Valentina Desideri, integrou o projeto Council’s Infinite Ear, baseado na premissa de que a surdez constitui uma especialização em som. Os seus trabalhos têm sido apresentados na Biennale Architettura XVIII (Veneza), Centrocentro (Madrid), Garage (Moscovo), Inkonskt (Malmo), Q-O₂ (Bruxelas), Pedreira (Porto), e tem textos publicados por Urbanomic, re:press, MIT e Norient.

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