Marée Noire + Teknolust
Lendl Barcelos
7 de Outubro de 2023

AS TECNOLOGIAS DE GÉNERO DA LUXÚRIA


No coração de Silicon Valley, muito antes do genoma humano ter sido totalmente sequenciado e da revolucionária técnica de edição genética, CRISPR, ter emergido, Lynn Hershman Leeson embarcou numa viagem visionária que fundia biologia, tecnologia e feminismo num estilo artístico único. As suas inovadoras obras multimédia não só desafiaram as fronteiras da arte contemporânea como também foram o prenúncio de um futuro onde a ficção científica e a realidade se intersetam.


Teknolust (2003) foi a primeira longa-metragem filmada em alta-definição a 24 frames por segundo com conversão gráfica em HD. A história é simples. O filme de Leeson segue a bio-geneticista Dra. Rosetta Stone e o seu trio de autómatos auto-replicantes (SRA, self-replicating automatons) que clonou a partir do seu próprio ADN: Ruby (vermelha), Olive (verde) e Marinne (azul), todas interpretadas por Tilda Swinton. Os clones necessitam de cromossomas Y para sobreviver, por isso Ruby fica encarregue de seduzir homens e recolher o seu sémen. Porém, acontecem duas coisas nesta história aparentemente básica que a tornam algo mais complexa: o sexo com Ruby faz com que os homens fiquem infetados, como que por um vírus informático, e Ruby conhece um homem por quem se apaixona, Sandy (Jeremy Davies), o que a torna relutante em continuar com as suas seduções extrativistas.


Mas por trás desta fachada heteronormativa da história de amor homem-mulher cis, encontra-se uma narrativa mais profunda que desafia as nossas perceções de desejo num mundo movido pela e orientado para a tecnologia. A Dra. Rosetta Stone funciona como símbolo de uma mulher consumida pelas suas ambições científicas, algo que a deixa alienada dos seus próprios desejos — que acabam por ser canalizados para os seus clones, sobretudo para Ruby. Os figurinos de Marianna Aström Defina e de Yohji Yamamoto reforçam esta ideia através do contraste entre o vestuário chique de cores sólidas e garridas dos clones e a roupa nerdy e de bibliotecária da Dra. Rosetta Stone.


A capacidade impressionante que Tilda Swinton tem de se transformar ao longo de várias identidades no filme oferece-nos uma sondagem prismática sobre personalidade e temperamento. Momentos como a visita da Dra. Rosetta Stone a um salão de cabeleireiro, onde procura parecer completamente diferente, suscitam perguntas sobre identidade e autoexpressão. Contudo, o seu pedido para ficar parecida com Björk acrescenta uma reviravolta inesperada à cena.


Isto é justaposto mais tarde com uma visita de Marinne e Olive ao mesmo salão, onde o inocente cabeleireiro assume erroneamente que Marinne é a Dra. Stone. Quando questionada se quer ficar parecida com Björk, Marinne responde simplesmente: “Gostaria de ficar parecida comigo.” No centro de Teknolust, um enigma crucial convida-nos a explorar a essência dos SRA da Dra. Stone. Estes enigmáticos autómatos auto-replicantes transcendem o domínio dos clones comuns; incorporam uma amálgama de substância orgânica e de software de ponta. Com uma composição que se encontra dividida com precisão entre 50% humano e 50% software, dissolvem as fronteiras que separam a carne humana de intrincadas linhas de código. No criativo filme de Leeson, esta complexa fusão é “surrealizada”, diminuindo a distância, de formas cativantes, entre o mundo dos computadores e dos humanos: os hospedeiros humanos são involuntariamente infetados com vírus de computador; clones codificados rompem com os limites digitais, libertando-se dos écrans (neste caso, de um micro-ondas) que outrora os continham para se aventurarem em viagens inesperadas no mundo tangível.


Todas as noites, Ruby é treinada com cenas românticas de filmes enquanto dorme, memorizando frases de engate para refinar a sua técnica de sedução. Esta preparação para uma espécie de “guerra de géneros” atinge o seu clímax absurdo quando Ruby se vê obrigada a alterar os seus hábitos por causa de Sandy, devido à crescente afeição que sente por ele. No seu encontro, numa loja de donuts, Ruby, que é alheia, de forma hilariante, ao conceito de dinheiro, é apanhada de surpresa quando o funcionário da caixa lhe pede o pagamento.


Tenta pagar usando os preservativos que tem na sua mala. Esta referência nada subtil à habitual economia libidinal de Ruby, assente no sexo, na sedução e no desejo, encontra uma inesperada barreira quando o funcionário insiste que somente o dinheiro é uma forma de pagamento válida. Leeson insiste: o sexo não compra tudo.


Teknolust, de Lynn Hershman Leeson, é uma viagem cinematográfica que atravessa a paisagem artística e intelectual de ícones ciberfeministas como Donna Haraway, Sadie Plant, VNS Matrix e 0rphan Drift. O filme coloca problemas de género sobre identidade, sexualidade, autoexpressão e a relação em constante evolução com a tecnologia.

Lendl Barcelos


Artista, “katafísico” e DJ, Lendl Barcelos explora as matérias vibratórias, muitas vezes da dimensão aural, mesmo quando estas ocorrem para além dos limites humanos normativos. Ao lado de Tarek Atoui, Allison O’Daniel, Myriam Lefkowitz & Valentina Desideri, integrou o projeto Council’s Infinite Ear, baseado na premissa de que a surdez constitui uma especialização em som. Os seus trabalhos têm sido apresentados na Biennale Architettura XVIII (Veneza), Centrocentro (Madrid), Garage (Moscovo), Inkonskt (Malmo), Q-O₂ (Bruxelas), Pedreira (Porto), e tem textos publicados por Urbanomic, re:press, MIT e Norient.

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