M. Butterfly
Rosa Maria Martelo
10 de Novembro de 2023

Não foi sem surpresa que os espectadores mais familiarizados com a filmografia de David Cronenberg assistiram à estreia de M. Butterfly, em 1993. Cronenberg baseara-se na peça de teatro homónima, de David Henry Hwang, uma obra multipremiada e com assinalável êxito na Broadway, onde se mantivera em cartaz entre 1988 e 1990. Mas, malgrado a estranheza que o realizador surpreendera no enredo dramatúrgico de Hwang, o filme parecia mais convencional do que seria expectável da parte de um realizador tão conotado com o thriller, e mesmo com o terror.


Apesar de, logo no título do filme, ser identificável uma alusão à célebre Madama Butterfly, de Puccini, ópera cujo libreto Hwang até certo ponto retomava, a peça de teatro e depois o filme baseiam-se sobretudo num caso verídico protagonizado por um funcionário diplomático francês, colocado em Pequim durante os anos da Revolução Cultural maoísta. Bernard Boursicot, o funcionário em causa, viveu então um prolongado e extravagantíssimo caso de amor e espionagem que o levaria à prisão e deixaria estupefacta a diplomacia francesa. Com grande impacto na imprensa nacional e internacional, o caso Boursicot envolvia um equívoco (ou talvez não) do ponto de vista das identidades de género que os tribunais tiveram dificuldade em entender. Mesmo assim, o universo fílmico de M. Butterfly, primeira obra de Cronenberg filmada fora do Canadá, é certamente mais convencional (ao menos na aparência) do que seria de esperar. O cineasta, que vinha de fazer o thriller psicológico Dead Ringers (1988) e logo depois filmara as fantásticas alucinações de Naked Lunch (1991), era conhecido pela relevância que o terror e a ficção científica detinham na sua filmografia. O próprio Cronenberg revelou numa entrevista ter precisado de convencer o produtor a confiar nele para realizar um filme aparentemente tão lateral relativamente aos traços dominantes da sua obra. E, todavia, se num primeiro momento poderemos pensar assim, cedo tenderemos a concordar com o realizador quando este argumenta que a fluidez das identidades sempre estivera presente na sua obra — e que fora precisamente essa a questão que o levara a querer transpor para o cinema a peça de teatro de David Henri Hwang.


M. Butterfly pode ser visto como um sofisticado jogo de espelhos interpostos entre diferentes imaginários. O que vemos no filme são, em grande parte, imagens de mundos que os protagonistas projectam e que querem ver reflectidos na sua interacção com os outros. E o jogo começa logo no título do filme. Como ler a abreviatura M.? No feminino, entendendo que se refere a Madama [Butterfly] e corresponde, portanto, a uma alusão à protagonista da ópera de Puccini (ópera que o diplomata descobre ao chegar Pequim)? Ou devemos ler aquele M. à francesa, como abreviatura de Monsieur? Existe, no filme, um Monsieur Butterfly? E, se aceitarmos esta hipótese, a que personagem se reportaria tal designação? A Song Liling, performer da Ópera de Pequim, a quem o diplomata chama “my Butterfly”? Ou ao próprio diplomata francês? Ou a um “outro” ainda, cuja identidade não caberia exactamente em nenhuma destas descrições? E que razões nos levariam a fazer uma escolha e decidir de uma certa forma? Ou não deveremos simplesmente decidir, já que a abreviatura M. mantém o género indecidível?


Há muitos jogos de reflexos a que dar atenção neste filme. Podemos começar pelos estereótipos com que o Ocidente descreveu o Oriente supondo-o uma realidade homogénea, sem grandes variações culturais. O Japão tradicional e a figura da gueixa Cio-cio San (Butterfly), já estereotipados na ópera de Puccini, são reelaborados no imaginário do diplomata, que os projecta na realidade chinesa do período da Revolução Cultural maoísta, incapaz de ver a explosiva transformação política que se desenvolve à sua volta. Importa salientar ainda, na mundividência do diplomata, a visão de um Oriente supostamente dominado pela prepotência do Ocidente, e também da mulher oriental como objecto perfeito do desejo masculino. Mas há outros jogos de espelhos: por exemplo, aquele em que a mulher “perfeita” deve coincidir com um ideal de abnegação total projectado por certo imaginário masculino e machista. René Gallimard (Jeremy Irons), o diplomata que aspira a ser amado por uma mulher assim, uma borboleta capaz de queimar as asas sem um lamento, teatraliza ou não a experiência amorosa que vive? E, se sim, até que ponto? Entre as personagens desempenhadas por Jeremy Irons e John Lone verdade, ilusão e mentira tornam-se indiscerníveis. Estamos perante uma história de amor ou de espionagem? Ou as duas em simultâneo? Ou meramente perante um caso de espionagem? Até que ponto o teatro acontece dentro do filme, dentro da vida? Como se distinguem as suas fronteiras? Ou não se distinguem? O filme foi estreado três anos depois de Judith Butler ter publicado o seu seminal Gender Trouble (1990), no qual argumenta que o género é sempre uma construção performativa, construída através de múltiplas interacções. O filme dar-lhe-ia razão, certamente.


Rosa Maria Martelo


Ensaísta, investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e professora catedrática aposentada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutorada em Literatura Portuguesa, tem privilegiado o estudo da poesia portuguesa e das poéticas modernas e contemporâneas. No âmbito da Literatura Comparada e dos Estudos Interartes, estuda as relações intermediais e transmediais da poesia moderna e contemporânea com as artes visuais e o cinema. Publicou O Cinema da Poesia (2012), Devagar, a Poesia (2022) e Matérias Difusas, Poderosas Coisas (2022). Coorganizou a antologia Poemas com Cinema (2010) e organizou a Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa (2021).

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