Esta sessão é bem representativa do trabalho de Mário Macedo que, através de registos diferentes, se tem mantido fiel aos temas que tem tentado capturar, de diversas formas: a ideia de comunidade e família, de cumplicidade na partilha do tempo contra o isolamento. O primeiro filme, Maria sem Pecado, de 2016, é, acima de tudo, uma obra contra o esquecimento, uma tentativa de ripostar contra a erosão do tempo, e, por isso, um gesto admirável. Desde logo, porque é sobre a relação entre Maria, de 88 anos e que já não se lembra de muito, e um dos seus filhos, Rui, que toma conta dela, reduzida na sua fragilidade a uma cama na maior parte do tempo destes seus últimos anos de vida. É um registo documental bastante cru, sem quaisquer enfeites, de longos planos fixos enquadrados de forma estratégica de modo a revelar, aos poucos, a vida neste pequeno canto que parece esquecido do resto do mundo. Além da mãe, Rui ocupa os seus dias a cuidar da casa, da horta, a aproveitar o sol; mais tarde percebemos que terá acabado de sair da prisão e estes momentos ganham outro significado. A falta de memória de Maria é problemática, mas é também um factor de força para ela acertar a sua história com Rui, numa espécie de pré-despedida que se alonga no tempo. Além do esquecimento, este é também um filme preocupado em revelar como as suas personagens preenchem o tempo e combatem o marasmo do quotidiano, procurando de alguma forma dar-lhe algum significado, uma alegria mínima. A cumplicidade entre mãe e filho, reféns da passagem do tempo, acaba por revelar-se uma forma de salvação pessoal.
Os temas da cumplicidade, de uma certa despedida perante um tempo que avança sem retorno e sem sair do mesmo sítio, e da ocupação de momentos que na sua repetição e prostração parecem perder qualquer significado ocupam também grande parte do segundo filme desta sessão, Terceiro Turno, de 2021. Localizado numa pequena vila no norte de Portugal, o filme acompanha Agostinho, que ao sair da fábrica onde trabalha sofre uma convulsão. Seguem-se pequenos momentos de uma existência sonolenta, anestesiada, de anseios perante a fragilidade de uma vida que parece esfumar-se com cada turno. Quando, por exemplo, a sua namorada anuncia que, tendo os exames corrido bem, conseguirá assim ir estudar para Lisboa, encontramos no seu abraço um anúncio de uma despedida inevitável. Os momentos com os amigos de Agostinho escondem, sob a capa da apatia e cansaço, uma revolta interna, um inconformismo interior que nunca é expresso, excepto nas sequências em que Agostinho conduz o seu Peugeot vermelho a alta velocidade, derradeira forma de escape. A partilha destes momentos de inércia, destes tempos mortos entre amigos, por oposição à solidão, e em particular à solidão do trabalho, permitem ainda assim encontrar algum conforto dentro deste ciclo de repetições.
Se Terceiro Turno é um filme visualmente despojado, próximo até de um certo minimalismo na forma como é dominado pela lenta passagem do tempo, com o seu filme mais recente, That’s How I Love You, de 2024, Mário Macedo leva ainda mais longe o aprimorar da aproximação a um estilo naturalista, reduzindo a acção a uma casa no campo, e a história ao que acontece durante apenas algumas horas. Filmada na Croácia, a curta acompanha uma criança, Ivan, que passa umas férias com os seus avós. Aqui, longe da cidade, o tempo tem um ritmo próprio e para uma criança é necessário encontrar uma distracção da monotonia, nem que seja uma história assustadora contada pela avó. A cumplicidade partilhada com o avô, que encontra na curiosidade do neto a sua própria distracção, acaba por levar a uma escalada de pequenas transgressões — um cigarro partilhado com o avô, o aprender a disparar uma espingarda — que levam Ivan numa jornada inesperada de descoberta das consequências das suas acções. Nesta pequena fábula sobre a perda prematura de inocência, encontramos também o cinema como forma de comunhão e, tal como nos outros filmes, uma aproximação entre quem procura refúgio nos pequenos gestos do dia-a-dia e talvez assim escapar à efemeridade da vida.
João Araújo
Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia do Porto, João Araújo escreve sobre cinema no À Pala de Walsh (do qual é coeditor desde 2017). Colabora, desde 2016, com o Festival Curtas de Vila do Conde, no comité de seleção, na moderação de conversas com realizadores e na coordenação editorial. É diretor e programador do Cineclube Octopus desde 2003. Em 2010, apresentou em vários pontos do país um filme-concerto a partir da filmografia de Yasujiro Ozu. Em 2015 colaborou com o Porto/Post/Doc na programação de um ciclo dedicado a Lionel Rogosin.
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