Os filmes da artista visual e realizadora Alice dos Reis encenam confrontos inquietantes entre o conhecimento empírico e o pensamento místico, esbatendo as fronteiras entre a ciência e o fantástico. Em vez de isolar estes dois polos, ela entrelaça-os, revelando — de forma simultaneamente lúdica e perturbadora — uma afinidade entre os seus modos aparentemente distintos de procura pela verdade. Veja-se a sua curta-metragem de 2019, Subcorrente, uma espécie de drama epistolar depurado centrado numa bióloga marinha que observa uma espécie de krill de águas profundas através de nanocâmaras implantadas nos corpos dos animais. Durante largos trechos do filme, observamos a cientista a olhar para o krill no ecrã do seu computador, imersa num estado de análise minuciosa. As trocas de correspondência escritas entre a cientista e um colega anónimo revelam-nos que o seu estudo tomou um rumo inquietante: uma fêmea grávida conseguiu reproduzir-se apesar do dispositivo instalado no seu corpo, e a cientista suspeita que o cardume de krill sabe que está a ser observado. Se é verdade que as tecnologias humanas frequentemente invadem e exploram os espaços naturais, o que seria se a natureza pudesse, em resposta, absorver o sintético e evoluir a partir dele? Mesmo as espécies mais diminutas podem escapar-nos, troçando das pretensões quase divinas da humanidade sobre a natureza — uma natureza que esta insiste, incessante e inutilmente, em dominar e controlar.
Este espaço liminar entre o terreno e o sobrenatural é explorado novamente no mais recente filme de Alice dos Reis, Nossa Senhora Que Queima (2024), uma meditação sobre a Serra da Gardunha, em Portugal. Recorrendo a imagens dessaturadas em 16mm da escarpada cordilheira, uma narradora traça ligações entre a história sagrada do local — frequentemente associado a visões de santos — e relatos mais recentes de avistamentos de OVNI. Vemos planos aproximados de alguém a bordar um desenho da serra onde os OVNI surgem espalhados de forma proeminente, conferindo a estas figuras paranormais uma dimensão próxima da arte devocional caseira, do tipo que se poderia encontrar em espaços domésticos. Dos Reis tem o hábito de trazer os temas teóricos dos seus filmes para uma escala pessoal e deliberadamente trivial: a narradora interroga-se sobre se os poderes espectrais da montanha poderão ajudar a libertar a sua gata envelhecida de uma gravidez (o nascimento miraculoso e mecânico da fêmea de krill surge aqui em contraste com uma espécie de aborto imaculado). Também em Para a Vida uma Doença de Cobre (2021), Dos Reis imagina um mundo em que os DIU de cobre são fabricados a partir de poeira de asteroide, sublinhando o seu interesse pelas estranhas mutações e intrusões que afetam o sistema reprodutivo feminino.
Para a Vida uma Doença de Cobre é também uma evocação ficcional da avó da artista, que trabalhou numa fábrica farmacêutica antes de as empresas serem responsabilizadas pela exposição dos seus trabalhadores a materiais tóxicos. Na segunda metade do filme, assistimos ao testemunho da avó de Alice dos Reis sobre as suas experiências — embora a mulher mais velha seja interpretada pela própria realizadora, envelhecida digitalmente, criando um efeito simultaneamente inquietante e fantasmagórico. Esta projeção espectral das duas mulheres dissolve tempo e distância, ao mesmo tempo que chama a atenção para a artificialidade da ilusão.
Dos Reis tende a representar as relações — geralmente entre mulheres — como nebulosas, enigmáticas, mas inexplicavelmente íntimas, sentidas mais do que visíveis ou evidentes. Em See You Later Space Island, duas amigas reencontram-se numa ilha despovoada (Santa Maria, nos Açores), onde uma delas está a estudar exoplanetas. A ilha alberga uma base de lançamento de mísseis, e grande parte do filme mostra as duas mulheres a deslocarem-se silenciosamente por diferentes cenários naturais e artificiais: um campo exuberante marcado por uma enorme antena parabólica; uma duna onde adolescentes gravam um vídeo para o TikTok. “Viemos para aqui há 500 anos e agora estamos a lançar foguetões para outros sítios?”, pergunta uma delas em voz-off, numa reflexão subtil sobre os alicerces coloniais da exploração científica.
Os axolotes — uma estranha espécie anfíbia nativa do México (mas que, como observa Dos Reis, foi exportada para lugares como Paris para investigação zoológica no final do século XIX) — estão no centro de Mood Keep (2018). Vemos duas mulheres a olhar para os telemóveis, presumivelmente a pesquisar sobre axolotes, intercaladas com planos aproximados do animal num aquário de vidro, que parece refletir o ecrã de uma televisão externa onde passa um anime. Como observa a narradora, os axolotes são fofos — parecem estar sempre a sorrir —, mas a “fofura” está intimamente ligada à duplicidade e à artificialidade. Apesar de vermos axolotes reais no ecrã, a sua imobilidade e expressões tolas dão-nos a sensação de estarmos perante figuras de plástico. Alvo de contínua investigação médica, os axolotes parecem aberrações da natureza por se encontrarem presos entre dois estágios evolutivos, o que lhes confere traços juvenis e delicados (como os membros subdesenvolvidos). Nesse sentido, tornam-se a mascote ideal para o cinema da liminaridade de Dos Reis — presos entre estados de existência, entre a falsidade e o real; um mistério da criação divina na forma de um desenho animado.
Beatrice Loayza
Beatrice Loayza é crítica e historiadora, e vive em Brooklyn. É colaboradora regular do New York Times e o seu trabalho pode ser encontrado na Criterion Collection, Film Comment, Atlantic, Nation, New York Review of Books, 4Columns, entre outros. É também professora no departamento de cinema da School of Visual Arts e está atualmente a trabalhar num livro sobre as atrizes da Nova Vaga francesa.
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