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Luas Novas: Alexander David

Ece Canlı
27 de Maio de 2025

O que aconteceria se as crianças de O Deus das Moscas (1954), de William Golding, aterrassem na ilha escocesa de Summerisle, do filme The Wicker Man (1973)? Se vivessem lá tempo suficiente, será que, em vez de caírem na selvajaria e no conflito, chegariam a acordo e construiriam uma comunidade duradoura, estabelecendo regras, rituais e costumes rigorosos, dando seguimento ao sacrifício cerimonial dos seus próprios elementos como um ato necessário para manter aquele mundo unido? Seriam os seus princípios, crenças, medos e poderes mágicos suficientes para manter a harmonia?

Num universo cinematográfico paralelo, poderia ser isso que se desenrola na estreia de Alexander David na realização, A Primeira Idade (2023), em que o espectador testemunha a coabitação carnavalesca, mas rigorosamente ordenada e autodeterminada, de um grupo de crianças numa ilha isolada. Diverso em idade, cor de pele, habilidades e expressões, o grupo de crianças partilha uma vida comum numa aldeia onde a linguagem verbal não tem valor, a comunicação flui através do gesto, do ritmo, da proximidade e a morte é um fenómeno desconhecido. De acordo com a narração — proferida por uma entidade com 500 anos, que os observa à distância sem interferir, vivendo na floresta para onde os adultos da comunidade foram banidos —, todos os anos, durante um eclipse, a criança mais velha do grupo é mandada saltar do penhasco no local mais distante da ilha, para se transformar num peixe eterno. Esta lógica parafísica estabelece o tom do filme, preparando o olhar para a estranheza que se avizinha.

Assim, entramos num cosmos mítico e místico onde a infância — pré-púbere e adolescente — não é um prelúdio da idade adulta, mas um mundo em si mesmo: circular, enfeitiçado e desligado da temporalidade adulta. O seu modo de vida é ao mesmo tempo ocioso, laborioso e malandro, pois o trabalho e o lazer coexistem sem contradição. No início, o filme pulsa com uma energia eufórica: as crianças irrompem pelo quadro dançando em trajes exuberantes, como pipocas que ricocheteiam no ecrã. Rapidamente, vemos os seus ritmos quotidianos: cozinhar, cultivar, limpar, dormir, cuidar e até procriar. O carácter assumidamente complexo e excêntrico destas crianças desorienta deliberadamente o espectador, um desconforto que David parece querer provocar. Ficamos inquietos com a sua existência insólita e intemporal, da mesma forma que elas ficam inquietas com a floresta que lhes é desconhecida, ameaçadora e até sagrada. Parecem habitar um presente eterno, sem passado nem futuro — não sabemos como ali chegaram, nem o que farão a seguir. O seu mundo desenrola-se como um espaço pré-linguístico, pré-moral e liminar, até que a dinâmica se altera.

A mudança ocorre quando um grupo de crianças atravessa o limite proibido da floresta. Lá, numa cabana em ruínas, descobrem livros e filmes desconcertantes como Nosferatu e Frankenstein — e, com eles, descobrem a morte. Começam a desejar: ler, decifrar, transcender, ou mais precisamente, viver. É uma queda cinematográfica do Éden, não através de uma maçã, mas de um feixe de projeção. Perdem a magia e, metaforicamente, a inocência. Tal como os sapatos de adultos que calçam, mas com os quais não conseguem andar, crescem demasiado num instante, tal como os seus pares no mundo não ficcional. Esta transformação atinge o seu auge no final, quando os jovens mais velhos permanecem na floresta, enquanto os mais novos regressam à aldeia: “Fujam crianças eternas para o mundo dos mortais, daqueles que vivem sem cores, daqueles que morrem para sempre.” E, no entanto, numa súbita rutura, uma das crianças outrora silenciosas grita: “MARIA!” — evocando não só a rapariga grávida, mas talvez o arquétipo do pecado, a mãe, o mito da queda. E, aqui, talvez comecem a percecionar o mundo através do olhar adulto, que se aproxima e enreda com o nosso.

No entanto, não é o olhar delas que se perturba, mas o nosso — o olhar adulto, forçado a testemunhar uma intimidade ostensiva que deveria permanecer privada entre elas. Enquanto as primeiras cenas de “acasalamento” são representadas através de desenhos ilustrativos e deveres mecânicos, uma vez “contaminados” pela floresta como “futuros adultos”, a sua “obrigação de procriar” transforma-se numa relação sexual manifesta, que o público adulto é forçado a ver sem considerações adicionais. A cena sexual explícita entre a rapariga grávida e o rapaz mais velho, apresentada sem mediação, cria um desconforto ético desnecessário: é um momento simbólico de transformação, mas também uma imposição problemática do desejo adulto em personagens que representam, de forma codificada, crianças. Levanta questões difíceis sobre o voyeurismo e a responsabilidade cinematográfica. Poderia esta perda de inocência — esta entrada na mortalidade — ser representada de outra forma?

Contudo, este olhar de uma perspetiva adulta recua em grande medida na curta-metragem seguinte de David, À Tona d’Água (2024), centrada noutra protagonista pré-adolescente. Ao contrário de n’A Primeira Idade, neste filme fundimo-nos com o mundo da personagem principal e o nosso olhar passa a ser o dela, que observa constantemente, maioritariamente com desconforto, mas também com curiosidade. Quanto mais esta contempla com serenidade e estranheza o ambiente que a rodeia, repleto de elementos masculinos (como os gestos e os músculos dos trabalhadores que constroem um lago num campo de golfe, a bateria na cave, o jovem em topless a apanhar sol com pele brilhante repleta de tatuagens), mais o espetador se deixa domar, igualmente desinibido e pronto a render-se ao que a narrativa lhe trouxer. Como a Barbie, que é abandonada a flutuar na piscina, ou o Ken, que é enterrado no subsolo, ambos sugerindo a morte ou a obsolescência dos brinquedos femininos convencionais. Essencial para esta tensão é a irmã mais nova da protagonista, que, apesar das suas opiniões divergentes sobre tatuagens, estética e aparência física, se envolve inconscientemente com os desejos não expressos da irmã. Propõe-lhe novos nomes masculinos, finge rapar-lhe a barba inexistente e encoraja-a a adotar traços percebidos como masculinos. Através desta brincadeira íntima, a irmã torna-se uma cúmplice silenciosa na subtil transgressão de normas de género que a protagonista em breve enfrentará de forma mais clara.

Em A Primeira Idade, as crianças descobrem a cabana como resposta às suas curiosidades coletivas — um espaço de encantamento e ambiguidade —, enquanto em À Tona d’Água, a busca da protagonista leva-a a uma figura adulta misteriosa, mas alegre, junto da água. Adornado com tatuagens e irradiando um sorriso gentil, ele encarna tudo aquilo pelo qual a rapariga parece ansiar. Talvez seja o seu futuro eu, marcado com tatuagens do gato e do nome dela no pulso — uma projeção espetral do que ela poderá vir a ser. Mas, como em A Primeira Idade, o tempo aqui é fluido, irrelevante. Quando a rapariga pergunta: “Que nome vou escolher?”, a única resposta é um salpicar de água; um gesto efémero que rejeita a fixação no tempo linear ou na identidade predeterminada. Em vez disso, afirma com leveza o valor de viver no suspenso e eterno agora.

Ece Canlı
Ece Canlı é uma investigadora, artista e música cujo trabalho cruza regimes materiais, políticas do corpo e performatividade. É doutorada em Design pela Universidade do Porto e é atualmente investigadora no CECS da Universidade do Minho, onde investiga as condições espaciais, materiais e tecnológicas do sistema de justiça criminal, o encarceramento queer, o design penal e o feminismo da abolição. Como artista, emprega técnicas vocais estendidas e eletrónica para criar som para performances encenadas, exposições e filmes, tanto em colaboração como a solo.

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