“Comecei a filmar Le navire Night na segunda-feira, 31 de julho de 1978. Tinha feito uma decupagem. Segunda e terça-feira, filmei os planos previstos. Na terça à noite, vi as imagens brutas. Nesse dia, escrevi na minha agenda: filme falhado.” M.D.
As primeiras filmagens não resultaram e Le navire Night esteve quase para não ser feito. Depois de uma noite de insónias, Duras decide abandonar o projecto inicial e, em vez disso, gravar o “desastre”. Filmar a impossibilidade de filmar é, talvez, a forma mais radical e provocatória do cinema. É o território de Marguerite Duras.
“Pouco a pouco, o filme emergiu da morte... virámos a câmara ao contrário e filmámos o que vinha na sua direcção: noite, ar, holofotes, estradas e também rostos.” M.D.
Le navire Night é um filme perdido e uma história de amor à deriva. Começa com um plano do céu através de uma janela; depois, sobre negro, reconhecemos a voz de Marguerite Duras. Fala do calor que faz em Atenas, tão forte que provoca um silêncio profundo e esse silêncio mete medo. Nas imagens, vemos Paris — filmada de longe e de alto. Parece a Babilónia. O ecrã fica outra vez negro. Ela muda de rumo. Vai contar a história que, em tempos, aconteceu a J.M., o jovem de Gobelins. Surge o título e a viagem nocturna começa. Entra a música. O encantamento.
Estamos em Junho de 1973, quase Verão. A câmara deambula por uma casa, muito lentamente: espelhos, uma mesa e cadeiras, projectores — o cenário. Marguerite Duras e Benoît Jacquot são os narradores, vozes sem corpo. Apresentam as personagens. Ele é um homem de 25 anos, trabalha num departamento de telecomunicações, no turno da noite. Aborrece-se. Usa as linhas telefónicas não atribuídas que ficaram do tempo da ocupação alemã — um submundo anónimo de vozes solitárias, um abismo — e encontra uma mulher.
Ela tem 26 anos e leucemia. Chama-se F. Apaixonam-se através da voz e das palavras, vêem-se quando fecham os olhos. É um amor velado que alimenta um desejo imenso, ciúmes, vigilância — estranho prenúncio dos nossos tempos.
Surgem os actores: Bulle Ogier, a doce Dominique Sanda e Mathieu Carrière. Estão naquela casa, no local de filmagens. São corpos (quase) sem voz; ouvem, olham, pensam. Não interpretam nada, ou interpretam tudo — é a mesma coisa. De tempos a tempos, ouve-se música. De tempos a tempos, a câmara perde-se em belíssimos devaneios exteriores; os travellings pelo Cemitério do Père-Lachaise ou pelo bosque são misteriosos.
A história dura meses, três anos. Eles falam, calam-se, dormem junto ao telefone — um prazer sem toque, sem rosto. Marcam encontros, mas não aparecem. Este amor vive da distância dos corpos, do desconhecimento da imagem, da ambiguidade das palavras. E, no entanto, quando se descrevem um ao outro, enquanto a câmara percorre as estátuas do Museu de Arte Moderna de Paris, a pedra transforma-se em pele e desencadeia um erotismo primitivo. O navio avança nas trevas.
O lado documental do cinema de Duras, sempre tão exuberante, atinge um dos seus pontos mais grandiosos em Le navire Night. Num ímpeto arrasador, ela vira tudo do avesso e oferece-nos o interior, aquilo que acontece antes da rodagem ou fica fora de campo. O que nos é dado a ver é a pré-história do filme: projectores (iluminação); um vestido vermelho (guarda-roupa); os actores a serem maquilhados; o texto escrito em quadros negros (diálogos); a mesa e as cadeiras, escadas, um piano, um telefone (cenário); um homem a tocar piano (música); repérages feitas em Paris. Da destruição, nasce uma flor. Em contrapartida, o exterior foi substituído pelas palavras; são elas que engendram a acção ou a possibilidade de acção, são elas a matéria cinematográfica de Duras. A história que ouvimos ganha uma sensualidade inédita; afinal não precisamos das habituais imagens narrativas sempre iguais umas às outras, podemos ver de olhos fechados: a camisa dele — fina, quase transparente —, uma ambulância, a fonte no jardim da casa de Neuilly, o motorista?
A partir do seu intenso desastre, Le navire Night faz um apelo à nossa inteligência inata: incita-nos a cumprir a primeira frase do filme para além dos seus limites. É necessário ver — claramente ver o lume vivo — para dizer sim à vida e à morte; ao amor e à loucura.
“Acho o filme ao mesmo tempo belo e fútil. Creio que as pessoas que não gostam do filme são virgens do próprio desejo e exercem a sua miséria como forma de condenar aqueles que estão sempre prontos a afundar-se nesse estado primordial que partilham com as feras, os loucos, a maioria — a tentação do amor.” M.D.
Cristina Fernandes
Cristina Fernandes (Porto, 1966) é investigadora independente na área do cinema. Desde 2004, escreve sobre filmes e literatura em diversas plataformas, atualmente no blogue Bicho Ruim. Tem publicado artigos em revistas e projetos editoriais dedicados ao cinema, assim como traduções de autores como Emil Cioran, Chantal Akerman e Marguerite Duras, em editoras como Edições 70, BCF e Contracapa. O seu percurso combina crítica, tradução e investigação, refletindo um interesse pelo diálogo entre artes, pensamento e imagens em movimento.
©2025 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits by LOBA