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Laberinto de pasiones

Álvaro Domingues
30 de Março de 2025

A 23 de Fevereiro de 1981, 23-F, à frente dos seus fiéis da Guardia Civil, o tenente-coronel Antonio Tejero assaltou o Congresso disposto a liquidar a democracia; envergando o tricórnio na cabeça, o bigode farfalhudo e uma arma empunhada, ordenou: “Que no se mueva nadie!!”

Em Pedro Almodóvar, tudo se move. Depois de uma guerra civil violenta, décadas de franquismo e execuções, Espanha soltava-se da opressão. Era a Movida! Antes de se tornar uma imagem de marca da nova Espanha e de promoção de Madrid, a Movida (1978–1983) era uma cultura underground, com fortes ligações à Pop Art e ao movimento Punk e New Wave. “La Movida comenzó cuando Franco se murió y nos volvimos todas locas. No sabíamos si iba a haber democracia o dictadura. Además, nos importaba un huevo. Sólo queríamos que nos dejaran vivir nuestra vida: follar tranquilos y vivir en libertad”, dizia MacNamara.

Desde o início, Pedro Almodóvar era muito activo nos meios musicais vanguardistas (como os Kaka de Luxe, os Alaska y Los Pegamoides, etc.) e artísticos de Madrid, nos clubes alternativos (como o Vía Láctea ou o Pentagrama), nos grupos de teatro (Los Goliardos, onde conheceu Carmen Maura e Félix Rotaeta) e, claro, no cinema. Essa diversidade (bem como o próprio Almodóvar) está presente em Laberinto de pasiones, tal como as músicas de Alaska, MacNamara, Tino Casal, os fotógrafos Alberto García e Ouka Lele, ou a estilista Sybilla.

Almodóvar é a “Patty Diphusa” — 12 crónicas por si escritas entre 1983 e 1985 para a revista La Luna de Madrid, referida logo no início do filme — , a estrela porno que conta histórias de fotonovelas onde entram violadores, casais homossexuais, uma drag queen, o noivo amnésico da sua rival, um taxista e o seu filho e outros. É este alter-ego ficcional de Almodóvar que encontraremos nos filmes, ilustrando individualidades exacerbadas, hiperbólicas e explosivas, sentimentalismo, desejos insaciáveis, vidas muy raras, embora, tudo contado como se de coisas banais se tratasse, usando linguagem crua, grotesca, com um léxico erótico vulgar sem subterfúgios metafóricos. Patty encarna a liberdade radical dos costumes e da moral, o cómico e o melodrama, a provocação, o excesso, o exótico e, sobretudo, muito sexo: “¿Mi profesión? Sex-symbol internacional, o estrella internacional del porno. Mis fotonovelas y algunas películas de Super 8 se han vendido muy bien en África, Portugal, Tokio, en el Soho y en el Rastro”.

Susan Sontag (1964) chamou Camp a este padrão cultural: pura experiência estética do mundo, a vitória do estilo sobre o conteúdo, da estética sobre a moralidade, da ironia sobre a tragédia, o anti-sério, o simulacro, o extravagante, a despolitização, etc. Andy Warhol realizou Camp em 1965 e a cultura Queer expandiu essa transgressão até hoje.

A abundância de identidades e o seu carácter ora exagerado, ora difuso ou instável, estava já presente nas curtas e na primeira longa-metragem de Almodóvar (1978). A presença dos travestis torna-se um recurso eficaz para expandir a visibilidade social, a teatralidade e a performance da superação do dualismo macho/fêmea, da desinibição, da libertação do corpo.

Logo no início de Laberinto de pasiones, mergulhado na multidão da mais icónica feira de Madrid, El Rastro, Almodóvar passeia o seu olhar desejante pelos olhares sensuais de Sexilia, (uma Patty Diphusa ninfomaníaca), e Riza Niro, o príncipe, que passam revista ao volume das entrepernas dos homens e ao menear das nádegas, num exercício cinematográfico onde a linguagem corporal vai codificando em cru os signos do sexo, do desejo, das paixões. Outras vezes esses signos aparecem em laboriosas composições estridentes de maquilhagem, roupas, cores e adornos. Da alta-costura ao kitsch, da paródia com as vestes da burguesia conservadora, aos acessórios mais berrantes e incríveis, Almodóvar constrói fetiches, narrativas visuais directas ou subliminares sobre tudo o que habita o desejo e a vibração com que se manifesta.

Laberinto de pasiones é… um labirinto que tanto se pode perder no regime torrencial das histórias, acontecimentos, temas e personagens onde não existem heróis, bons ou maus, como escapar na cena final do filme: o enamoramento e o sexo entre Riza Niro e Sexilia — ela finalmente livre da ninfomania e ele dos jogos de sedução da sua mãe, literalmente, voando para um paraíso tropical numa ilha caribenha.

A narrativa flui em modo desconcertante, dispersivo, onde há de tudo: hedonismo, música, uma fotonovela gay sadomasoquista, uma princesa, inseminação artificial, incesto, bissexualidade, sexo em grupo, homossexualidade, afrodisíacos para homens e periquitos, terroristas, droga, álcool, muito calão, ambientes domésticos, espelhos e cristais, cenas de engate na noite madrilena…; em tudo há uma destruição criativa e sistemática da moral burguesa e retrógrada do franquismo, da família, do politica ou do esteticamente correcto. A filha, na cama com o pai que, antes, achava o sexo repugnante, diz ao telefone a uma amiga: “Acabaram-se os problemas de sexo na família!”

Chamaram-lhe pós-moderna para contrastar esta cultura com o militantismo social e político da modernidade do pós-guerra que a ditadura aniquilara. A libertação moral e sexual dos anos 60 aparece aqui esvaziada das ideologias da esquerda e de causas sociais. Juan Luis Cebrián, o fundador do El País (1976), um moderno, marxista e existencialista, no seu livro La España que bosteza (1980), fala de um ambiente de desencantamento com as promessas frustradas da jovem democracia e da esquerda que se enreda em pactos, alianças e crises: “un verdadero suicidio político de la oposición”.

Sobre essa melancolia, Almodóvar constrói a suas narrativas picarescas, jocosas, anti-épicas, anti-heróicas, plenas de micro-episódios delirantes e gags, de mudanças rápidas entre o banal e o grotesco e vice-versa, de situações desconcertantes, dissensões e contradições, exageros, desinibição extrema, paródia, melodramas, feísmo, kitsch e, sobretudo, desejo, sexo e erotismo transbordante. Patty Diphusa dizia que era sempre a mesma coisa: o prazer, a dor, a verdade, a liberdade, o amor, a morte. Não há um código alternativo à transgressão moral, mas sim um jogo móvel que vai inventando e dissolvendo as suas próprias regras — uma moral “líquida”, como diria Z. Bauman —, tudo em função do prazer que daí possa derivar. Vale a pena lembrar António Variações (1983): “Vou viver / até quando eu não sei / que me importa o que serei / quero é viver / Amanhã, espero sempre um amanhã / e acredito que será / mais um prazer (…)”

Álvaro Domingues  
Álvaro Domingues é geógrafo, professor e investigador da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo (CEAU-FAUP). Entre outras obras, é autor de Portugal Possível (2022, com Duarte Belo), Paisagem Portuguesa (2022, com Duarte Belo), Paisagens Transgénicas (2021), Volta a Portugal (2017), Território Casa Comum (2015, com N. Travasso), A Rua da Estrada (2010), Vida no Campo (2012), Políticas Urbanas I e II (com N. Portas e J. Cabral, 2003 e 2011), e Cidade e Democracia (2006). É sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Escreve regularmente no jornal Público.

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