La piel que habito começa com um contraponto entre uma vista de Toledo e a de uma mansão isolada, El Cigarral, uma espécie de fortaleza fechada sobre si no fim de um caminho incerto. Através dos gradeamentos e das janelas cerradas, adivinha-se um corpo que se movimenta. Trata-se da uma figura indefinida, um corpo que se dobra de costas sobre um sofá, uma personagem que surge como um manequim, marioneta, ou robot, exprimindo uma enorme tensão, primeiro, e, depois em posição de yoga, uma grande quietude. O fato justo da cor da pele, que lhe cobre o corpo, oculta traços e identidades como se fora casca de uma crisálida que esconde um enigma. O rosto não exprime qualquer emoção, os olhos estão cerrados.
Na cena seguinte, um par de mãos prepara uma bandeja com medicamentos e bebidas. De seguida, a câmara fixa a capa de um livro sobre Louise Bourgeois e continua filmando cabeças e bustos feitos com fragmentos de tecidos e cola e, novamente, um par de mãos cortando tecidos e colando-os. Através de um elevador interno, a bandeja com os medicamentos, água e alimentos é enviada, juntamente com tecidos e um livro, para o aposento/prisão onde está confinada a criatura. Na cozinha estão dois ecrãs que registam e vigiam tudo o que se passa nesse aposento fechado.
O rosto da prisioneira é belíssimo e a voz é quase meiga e muito jovem. O seu nome é Vera, embora nunca se venha a saber quantas verdades existem nesse corpo e de que modo se cruzam tantas e contraditórias identidades. O corte de tecidos e a colagem sobre as cabeças e bustos remete para a obra de Louise Bourgeois (1911–2010) para quem o vestuário usado guarda memórias problemáticas — os fragmentos de tecidos são cosidos a cabeças e a corpos contorcidos, transformados, desmembrados. Tudo na obra da artista é inquietante e Louise encarava a produção dessas peças, usando a sua própria roupa, como a sua segunda pele e, nas suas próprias palavras, como metáforas: cortar, rasgar, coser, juntar, colar… exprimem, ao mesmo tempo, tensão ou sofrimento, mas também actos de reparação, desejo, sexualidade, tensão, conflito ou fragmentação identitária. A utilização de materiais macios confere frequentemente a estas obras uma qualidade sensual e uma sensação quase táctil de vulnerabilidade e intimidade. Abundam os corpos mutilados, amalgamados, quase inumanos — corpos como lugares de violência.
Na ficha técnica do filme, Pedro Almodóvar agradece a Louise Bourgeois: “Gracias a Louise Bourgeois, cuya obra no sólo me há emocionado, sino que sirve de salvación al personaje de Vera.” Contudo, não parece haver salvação neste filme. Existe ódio, negação, trauma, resistência e a revolta de um corpo profanado. O ópio ajuda a esquecer.
Na sua longa vida, Louise Bourgeois passou quase 20 anos com uma série de obras a que chamou Cells. Aí se fixa um microcosmo enclausurado em jaulas que o separam do mundo exterior. Louise fala insistentemente na dor — na dor física, emocional e psicológica, mental e intelectual, interpelando a relação entre o físico/material e o emocional —, e na necessidade de exteriorizar a sua vida, as suas próprias memórias — “Art is a guaranty of sanity”, escreve numa das suas obras; e, numa outra, "You have to tell your story and you have to forget your story. You forget and forgive. It liberates you”. Na obra In and Out, de 1995, o espaço interior da célula é protagonizado por um corpo contorcido sem rosto e sem braços que se arqueia de costas e se multiplica por espelhos e esferas espelhadas. Cell tanto pode significar o poder vital de uma célula, como o encapsulamento, o isolamento de uma prisão: “Each cell deals with a fear. Fear is pain... each cell deals with the pleasure of the voyeur, the thrill of looking and being looked at.” O medo e a dor estão sempre presentes e as Cells oferecem-se ao voyeur, desafiando-o, expondo a turbulência e um certo negrume do mundo interior da artista e provocando o olhar e as memórias de quem observa. Como no cinema.
Tudo é trágico e violento neste filme de Almodóvar. Vera habita uma pele que lhe foi imposta — primeiro, subjugada, por vingança, para que se esqueça de quem foi e se transforme em cobaia de laboratório, depois para que construa uma identidade que, de facto, nunca desejou. Tudo o resto explode nos vazios, ressentimentos, na amoralidade e nas contradições dos personagens. O cirurgião Ledgard e o ladrão Zeca são irmãos e não sabem; a mãe que os pariu admite que são loucos; da história trágica do primeiro, ficou o suicídio da mulher e da filha; Ledgard mata Zeca depois de este ter violado Vera, pensando que era a mulher de Ledgard e sua ex-amante. Tudo isto é revelado pela mãe, Marília, numa sequência dominada por um ritual de fogo numa pira enorme onde se queimam as provas do assassínio de Zeca. Quase chega a parecer uma família: a mãe, o filho e Vera, o corpo da vingança mudado em corpo de desejo, como no mito em que Pigmalião se apaixona pela estátua de marfim que pacientemente talhou, transformada em mulher de carne e alma pelas artes da deusa do amor. Essa não é Vera; Vera é uma manta de retalhos, um destroço humano produzido por um criador louco e vingativo.
El Cigarral é a mansão assombrada, a casa das torturas, o território da manipulação, do controlo e da violência assistida por (bio)tecnologia de ponta, vigilância electrónica e personagens cuja história o filme enreda em tempos passados e presentes. Nunca uma personalidade se pode construir de forma linear.
Quando Vera fica “pronta”, com uma pele perfeita resistente à dor, produz-se o embate entre a perfeição estética do corpo/objecto (como os corpos/pintura de Ticiano que ocupam as paredes imensas da casa), e a inquietação e a dor permanentes que transparecem no seu olhar, mesmo quando pretende encarar o vazio e a revolta que a habita. Vera foge, procurando a sua origem seis anos depois da transgénese. Encontrará um labirinto, o mesmo que, como um diário de sobrevivência, ficou desenhado nas paredes do lugar onde esteve prisioneira: respiro, sobrevivo.
Pedro Almodóvar enfrenta um verdadeiro regime de excepção sobre os limites do poder e da manipulação da (bio)tecnologia na submissão dos corpos, um pesadelo próximo daquilo que Giorgio Agamben denuncia na sua obra Homo Sacer — O Poder Soberano e Vida Nua. El Cigarral é a metáfora biopolítica do extermínio, da banalidade da mutilação, da produção de sobreviventes, da desumanização.
Álvaro Domingues
Álvaro Domingues é geógrafo, professor e investigador da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo (CEAU-FAUP). Entre outras obras, é autor de Portugal Possível (2022, com Duarte Belo), Paisagem Portuguesa (2022, com Duarte Belo), Paisagens Transgénicas (2021), Volta a Portugal (2017), Território Casa Comum (2015, com N. Travasso), A Rua da Estrada (2010), Vida no Campo (2012), Políticas Urbanas I e II (com N. Portas e J. Cabral, 2003 e 2011), e Cidade e Democracia (2006). É sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Escreve regularmente no jornal Público.
©2025 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits by LOBA