A paixão segundo Sara Montiel
Há um momento crucial em La mala educación. Na fuga do assédio do Padre Manolo, o menino Ignacio cai violentamente no chão e dá com a cabeça numa pedra. Voltando-se para o perseguidor — e para nós —, uma linha vermelha começa a percorrer-lhe a testa e é então que a imagem, ainda em movimento, parte-se em duas. A voz infantil nos diz: “Um fio de sangue dividia meu rosto em dois. E tive o pressentimento de que com minha vida aconteceria o mesmo.” Nessa meiose cinematográfica extravagante, a fenda na carne é também uma duplicação: de cada lado do quadro, ainda é o rosto reconhecível de Ignacio que nos olha. Do buraco que se forma entre as duas metades, surge da escuridão a face do algoz. Um rosto emerge das entranhas de outro rosto. Uma outra imagem é arrancada do interior de uma imagem partida. Nessa dança de superfícies sobrepostas, a matéria de La mala educación é feita de fissuras, de duplos e de abismos.
A última cartela dos créditos iniciais, que nomeia Pedro Almodóvar como argumentista e realizador do filme que começamos a ver, é sucedida por um cartaz na parede que diz: “guión y dirección: Enrique Goded”. Esta será a primeira duplicata, mas o furor das repetições diferidas está apenas começando. Na Madri de 1980, um realizador de sucesso é procurado por um ator aspirante ao estrelato, que diz ser um antigo amor dos tempos de colégio religioso. Ele tem nas mãos um conto que dá para um filme. Na mise en abyme que se inicia, La mala educación parte-se em dois: o filme a fazer-se desprende-se de sua feitura, duplica-se na narrativa autobiográfica que o inspira. Dentro do relato há outro relato, mas talvez haja ainda outros, que ainda não conhecemos. A proporção da tela até que se reduz, para abrigar a história dentro da história e emoldurar o abismo, mas não haverá porto seguro para o espectador que se move numa corda bamba entre a biografia e a memória inventada, entre a ficção e a mentira.
Cada personagem de La mala educación se divide para duplicar-se em pelo menos dois. Enrique Serrano é Enrique Goded. O Padre Manolo é também o Sr. Berenguer. Ángel Andrade é Ignacio Rodríguez, é Zahara, e talvez seja ainda um outro. La mala educación é um melodrama obcecado pelo melodrama, e importa dessa tradição uma atração particular pela figura do duplo. É a mulher que recomeça a vida com outro nome para escapar do destino (La mujer del puerto, de Arcady Boytler), é a irmã gêmea que usurpa o lugar da outra (La otra, de Roberto Gavaldón), é Vertigo antes de Vertigo e Rebecca depois de Rebecca (Más allá del olvido, de Hugo del Carril). Diante dessa arte das duplicatas, Almodóvar não poderia senão se dedicar à multiplicação exponencial: La mala educación é uma espiral de aparências enganosas, de imagens dentro de imagens, de ressonâncias insuspeitadas — aqui, não há nada mais parecido com a arte das drag queens do que a iconografia dos padres católicos.
A obsessão pela diva do melodrama Sara Montiel, que marca a formação cinéfila do protagonista desde os tempos de colégio, contamina a forma do filme. Em Esa mujer (1969), o filme de Mario Camus que ocupa a tela do cinema do povoado aquando da iniciação sexual entre Ignacio e Enrique, Sara é uma força disruptiva que se desprende do cinza de uma Espanha tradicional com seus vestidos mirabolantes, seus penteados insólitos, suas cores (a)berrantes — e seus olhares que fulminam o eixo da câmera, mirando bem no abismo de nossos olhos. Almodóvar se inspira nessas rupturas visuais impostas pela presença de Sara, que distorcem os códigos do gênero — para redobrá-las, abraçando a vertigem de um metamelodrama apaixonado. O disparate dos decorados, a onipresença da música, as viradas estapafúrdias marcam a coerência de uma apropriação que é autoconsciente, mas sem um pingo de deboche: Almodóvar é tão devoto de Sara quanto Ángel, que passa meses a estudar uma de suas imitadoras.
Se a cartilha sociológica diz que a educação sentimental do melodrama tratou de lecionar às mulheres a servidão, a fúria cinematográfica de uma María Félix também as inspirou a serem donas, bárbaras, diabas. No mesmo movimento, a exuberância disruptiva de Sara Montiel não poderia senão ensinar a Almodóvar uma arte da extravagância e do transbordamento. Assim como, na cena iniciática, a cor púrpura de seu vestido inventa, na sala de cinema, um amor dissidente e uma maneira de viver fora da norma, o realizador aprende com a diva a transgredir as regras — as morais e as estéticas — e a mergulhar no abismo. No fim, resta o salto vertiginoso, o zoom na palavra pasión.
Victor Guimarães
Crítico de cinema, programador e professor. Doutorado em Comunicação Social pela UFMG, com passagem pela Université Sorbonne-Nouvelle (Paris 3). Colaborou com publicações como Cinética, Con Los Ojos Abiertos, Senses of Cinema, Desistfilm, Outskirts, Documentary Magazine, La Vida Útil, La Furia Umana e Cahiers du Cinéma. Foi programador no forumdoc.bh, na Mostra de Tiradentes e na Woche der Kritik de Berlim, e realizou programas especiais para espaços como XCèntric (Barcelona), Essay Film Festival (Londres) e Cinemateca de Bogotá. Atualmente, é programador do FICValdivia (Chile) e diretor artístico do FENDA (Brasil).
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