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La ley del deseo

miguel bonneville
26 de Abril de 2025

primeira parte
vi a lei do desejo pela primeira vez quando passou na televisão portuguesa durante a minha adolescência. perturbou-me de tal maneira que nunca mais o voltei a ver até ter de escrever este texto. a inquietação que senti equiparou-se à sensação de quando vi o l’homme blessé (patrice chéreau, 1983) ou o happy together (wong kar-wai, 1997): filmes que partilham uma visão do desejo como força destrutiva, e em que o amor — se é que se pode usar esta palavra — não é uma experiência satisfatória; é um impulso que arrasta os protagonistas para relações marcadas pela obsessão, pela dor e pela impossibilidade de reciprocidade. o amor — se é que se pode usar esta palavra — é insustentável, e a solidão, inevitável. o desejo é um abismo entre amantes, torna a comunicação entre eles impossível, condena-os a uma voracidade que nunca é satisfeita, a uma procura incessante por uma plenitude que nunca alcançam. e nada disto é por acaso: os três filmes abordam a identidade queer em sociedades que resistem à sua existência, marginalizando-a brutalmente.

pergunto-me se se pode usar essa palavra — amor — porque estamos a falar de desejo, e porque, se não fomos ensinados a amar, será que sabemos o que é que isso significa? saberemos pô-lo em prática? saberemos, de facto, ultrapassar aquilo que nos foi negado e incorporar uma ideia de que a sociedade vende, mas não pratica?

no período em que o filme foi feito, as relações homossexuais eram vítimas de uma maior repressão social e política, e a representação de relações queer estava quase sempre ligada à clandestinidade, à perda, à tragédia. em espanha, a democracia pós-franquista ainda estava cheia de resquícios de um moralismo conservador. no entanto, almodóvar queria celebrar os primeiros momentos de liberdade, os primeiros momentos de democracia, depois de 40 anos de ditadura. e a lei do desejo foi um marco na representação lgbtq no cinema espanhol—porque se focou, pela primeira vez, em protagonistas trans e homossexuais, de forma aberta e descomplexada, sem deixar, no entanto, de mostrar também a repressão social que faz quotidianamente parte das suas vidas.

o filme é inaugural em vários sentidos dentro da carreira de almodóvar: é o seu primeiro melodrama — abriu caminhos estéticos e temáticos que acabaram por ser repetidos e desenvolvidos ao longo das décadas seguintes. como ele próprio afirmou, a lei do desejo é um filme-chave no seu percurso, porque explora uma necessidade absoluta de ser desejado e, ao mesmo tempo, a constatação de que é muito raro dois desejos coincidirem e corresponderem-se completamente — perspectiva que se vê claramente em filmes posteriores como ata-me, mulheres à beira de um ataque de nervos e má educação. o filme foi ainda o primeiro a ser produzido pela produtora el deseo, criada pelo próprio almodóvar e pelo seu irmão agustín. e foi o seu primeiro filme no qual a personagem principal é declaradamente inspirada no próprio realizador.

segunda parte
a máquina de escrever n’a lei do desejo é uma extensão física e emocional de pablo—é a ferramenta intermediária que transforma a realidade em narrativa, que serve para dominar as frustrações através da escrita. não posso não associar esta ideia a william s. burroughs (especialmente em naked lunch—tanto no livro como na adaptação cinematográfica de david cronenberg), para quem a máquina de escrever se transforma numa espécie de órgão vital que converte impulsos em texto. no filme de cronenberg, a relação entre humano e máquina é visceral—a máquina de escrever metamorfoseia-se numa criatura orgânica que vomita palavras numa compulsão irreprimível.

tal como pablo — alter ego de almodóvar — , o protagonista de naked lunch, bill lee — alter ego de burroughs —, encontra-se num estado de fusão identitária e criativa, em que desejo, violência e escrita se influenciam profundamente. ambos vivem a complexidade de um processo criativo que é, ao mesmo tempo, libertador e opressor — uma compulsão que revela tanto as suas fragilidades como o desejo de recriar o mundo à imagem das suas próprias obsessões. a máquina de escrever torna-se uma espécie de interface queer, um portal através do qual as identidades ditas marginais encontram expressão.

o acto de escrever não se resume a transmitir histórias lineares, mas a materializar conflitos internos — desejos reprimidos, traumas pessoais, fantasias irrealizáveis. a máquina de escrever torna-se símbolo de transgressão — uma ferramenta que dá corpo a identidades fragmentadas, fora da norma, que transforma confissões íntimas em gestos públicos (o pessoal é político).

fico então a pensar: hoje, a inteligência artificial aparece como uma ameaça à criação artística humana; será que ela pode vir a ocupar um lugar subversivo, como as máquinas de escrever naquela época, e tornar-se uma ferramenta intermediária para um acto visceral de absoluta resistência?

miguel bonneville
miguel bonneville introduz-nos a histórias autoficcionais, centradas na desconstrução e reconstrução da identidade, através de obras que cruzam múltiplas áreas artísticas. Realizou filmes como Traça (2016), Um medo com duas grandes faces (2022), e Camera obscura (2023). Publicou os livros Ensaios de santidade (Sr. Teste, 2021), O pessoal é político (Douda Correria, 2021), e ainda as edições de artista Jérôme, Olivier et moi (Homesession, 2008), Notas de um primata suicida (2017), e, através do Teatro do Silêncio, Dissecação de um cisne (2018), Lamento do ciborgue (2021), Recuperar o corpo (2021) e Câmara escura (2022).

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