Ken Loach: Planos de Resistência
Gareth Evans
18 de Maio de 2024

Quando se consideram o ambiente, o tom e as escolhas formais de certos cinemas nacionais ao longo do espetro da realização de cinema mundial, é geralmente possível discernir várias tendências em jogo, por vezes em competição, dentro de um dado território. Em relação ao cinema britânico, contudo, um género e uma abordagem destaca-se de todos os outros: o do drama social realista. Isto cresceu das conquistas de longa data do país no teatro e da sua tradição pioneira em documentários, bem como do seu compromisso centenário — apenas recentemente a desvendar-se — na difusão, apoiada por fundos públicos, de obras de consciência política na rádio e na televisão. 

 

Neste extenso corpo de trabalho — que contém centenas, claro, se não milhares, de escritores, realizadores e produtores — o criador mais proeminente internamente e internacionalmente é, com uma margem considerável, Ken Loach. Um de apenas nove realizadores na história do Festival de Cinema de Cannes que ganhou duas Palmas de Ouro e a pessoa com mais filmes —15 — em competição no festival, Loach é um dos mais aclamados realizadores na história do meio. Renomado e respeitado globalmente pelo seu compromisso profundo e vitalício com as preocupações da classe operária, expressadas de forma carinhosa e profundamente empática — e simultaneamente zangada, com razão — sem ser condescendente nem com as suas personagens nem com o seu público, Loach teceu, ao longo de seis décadas, um cinema inigualável da solidariedade, que parte de histórias, protagonistas, lugares e condições específicas para dialogar universalmente com os seus temas perenes sobre opressão, injustiça e resistência, tanto pessoal como coletiva.


Além de refletir a sua posição política pessoal enquanto socialista progressivo, existe uma razão profundamente estrutural para Loach valorizar e defender uma tal forma de estar no mundo, e as representações fílmicas e incorporação que se lhe encontram associadas. Nascido em 1936, foi um dos muitos beneficiários das mudanças políticas radicais na organização social e na educação trazidas pelo governo trabalhista do pós-guerra de 1945. Vindo de um contexto da classe operária do interior inglês, frequentou uma escola secundária bem estabelecida e depois seguiu para a Universidade de Oxford. Após um período como ator no teatro regional do país, juntou-se à BBC enquanto realizador para televisão, onde desenvolveu a sua abordagem, distinta da dramatização das questões-chave sociais e políticas da altura. Sempre a desenvolver ideias em proximidade com escritores igualmente engajados e apaixonados, dirigiu desde então dezenas de “peças” televisivas, bem como longas-metragens de ficção e obras de não-ficção para o formato, terminando apenas nessa arena mesmo antes da viragem do milénio.


Mostramos três destas obras nesta temporada: Up the Junction (1965, a partir de histórias de vidas de mulheres em Londres, de Nell Dunn), The Big Flame (1969, que mapeia uma ocupação feita por trabalhadores das docas em Liverpool) e uma das obras mais famosas na história da televisão, Cathy Come Home, de 1966, que se ocupa dos efeitos devastadores da falta de abrigo na coesão familiar. Um trabalho espantoso que ainda choca, e que levou finalmente a mudanças na lei britânica.


Famoso por trabalhar de forma regular com interpretes que não são atores profissionais, Loach filma cronologicamente, revelando o guião de forma faseada e apenas deixando cada um dos seus atores saber o que precisam de saber a cada determinado momento. Desde a sua primeira longa-metragem para o cinema, Poor Cow (1967, adaptando um romance de Nell Dunn que se foca nas pressões sociais e emocionais de uma jovem mulher), passando por mais de 30 títulos e 55 anos, desenvolveu e apurou estas estratégias com efeitos impressionantes e muitas vezes reveladores, criando uma autenticidade extraordinária e uma intensidade emocional crescente.


Este poder acumulado é experimentado de forma angustiante no seu Kes, de 1969, uma adaptação do romance semiautobiográfico de Barry Hines sobre um sistema educativo brutal, a esperança num horizonte mais alargado e a procura da beleza no mais-do-que-humano. Um dos mais belos filmes sobre a infância, foi a segunda longa-metragem de Ken Loach.


Os anos 70 e o princípio dos anos 80 foram extremamente produtivos para Loach, sobretudo na televisão, tendo trabalhado em mais três projetos com Hines. Entretanto, o período também viu o desenvolvimento do capitalismo neoliberal no Reino Unido, cunhado thatcherismo, após a primeira-ministra Margaret Thatcher pretender remodelar a política, a sociedade e a economia britânica tão extensamente em termos de direita como o governo de esquerda de Attlee tinha feito 40 anos antes. Estas políticas colocaram em marcha muitos dos problemas sociais — a crise da habitacional, as enormes desigualdades económicas e sociais, a degradação do ambiente, um crescente nacionalismo excludente, etc. — a exploração e o contrariar da mesma que dominariam o cinema de Loach desde então até ao presente. Destas muitas obras, apresentamos Raining Stones (1993), Ladybird, Ladybird (1994, companheira de Cathy Come Home), I, Daniel Blake vencedor da Palma de Ouro em 2016 e a ficção sobre precaridade de 2019, Sorry We Missed You. Até Looking For Eric, a comédia desportiva de 2009, é cataterizada por uma crise pessoal aguda e informada socialmente.


Contudo, antes destes, Ken Loach faria Fatherland (de 1986, a partir de um guião original do falecido Trevor Griffiths), uma ficção política que se passa em Inglaterra e na Alemanha, simultaneamente, e o primeiro filme que faria no exterior. Ainda que bastante distinto tonalmente, constitui um da meia dúzia de filmes que Loach fez internacionalmente. Estes incluem Carla's Song (1987), uma história de amor que liga a Escócia e a Nicarágua revolucionária, e Bread and Roses (2000, que mantem o foco hispânico mas desloca-o para Los Angeles e para a luta pelo reconhecimento do sindicato dos trabalhadores da limpeza). Também entre eles se encontram os seus dois grandes épicos históricos sobre a guerra civil, Land and Freedom (1995), passado em Espanha, e o seu The Wind that Shakes the Barley, irlandês, vencedor da Palma de Ouro em 2006, com a participação de Cillian Murphy, vencedor do Óscar de 2024.


O que também é notável aqui é que é a partir destes trabalhos que duas das mais importantes e duradouras relações criativas na vida de Loach emergiram. Carla's Song foi escrito pelo então ativista dos direitos humanos Paul Laverty, que fez o guião de todas as ficções do realizador (exceto uma) desde então, enquanto que Rebecca O'Brien produziu todos os seus filmes desde Land and Freedom (em 1990, coproduziu Hidden Agenda, o seu thriller político sobre a Irlanda do Norte). A produtora Sixteen Films foi estabelecida em 2002 para tornar possível este vasto portfólio. Tal visão partilhada, e a confiança que resulta de décadas de trabalho em conjunto, postula de forma inequívoca a centralidade da colaboração no método de trabalho de Loach, o seu sentimento sobre o potencial radical do cinema, e as suas convicções políticas. Esta abordagem coletiva estende-se a todos os atores, à equipa, à comunidade mais alargada tratada nos filmes, e claro ao público dos seus inúmeros filmes. 


Nesta frente unida, histórias complexas e traumáticas são lembradas e respeitadas; o domínio público é celebrado e defendido e há um testemunho comovente da injustiça. É devolvida a dignidade a vidas normalmente negligenciadas, na melhor das hipóteses, e deliberadamente marginalizadas, na pior das hipóteses. São ouvidas as vozes, a raiva é permitida, as experiências são reconhecidas. Naquela que é atualmente a sua última longa-metragem, The Old Oak, de 2023, o local, o global, e o internacional juntam-se numa reunião entre o pub do mesmo nome (metáfora e encarnação de uma solidariedade inglesa duradora) e uma árvore genealógica de participantes que procuram definir os seus próprios termos de pertença face à hostilidade governamental. Este contrato social autocriado a partir de baixo sublinha o que Ken Loach procurou relembrar-nos durante mais de meio século e ao longo de mais de 60 filmes — trabalho que confirmou a humanidade inerente ao próprio cinema e ao seu próprio país do coração e da mente, um que não tem fronteiras nem paredes — que outro mundo melhor é possível.

Gareth Evans é escritor, editor, curador de eventos e produtor de filmes. Vive em Londres.

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