Joanna Hogg
Guilherme Blanc
1 de Abril de 2023

Pode dizer-se que a obra de Joanna Hogg é herdeira de uma tendência particular de fazer cinema, própria do contexto onde a autora nasceu, estudou e trabalhou ao longo da vida. Mas pode dizer-se, também, que a sua obra se singulariza precisamente pelo modo como deturpa questões de forma e de escrita típicas de uma certa tradição britânica de realização, dentro e fora do cinema. É neste paradoxo matricial, nesta atitude de desafio a certas convenções, e namoro com outras, que os seus filmes se desenvolvem, e se vão renovando também, revelando uma prática cinematográfica meticulosa e que cresce de modo excitante desde 2007, o ano da sua primeira longa-metragem.

Depois da curta Caprice (1986), uma fantasia pós-moderna fulgurante sobre moda, que realiza no final dos seus estudos (cheia de Novo Romantismo, fazendo-nos lembrar os videoclipes de Steve Strange e o clube Blitz), Hogg inicia um longo percurso de realização em televisão. Um percurso de mais de três décadas.

É indelével a marca que esta experiência deixa na sua obra inicial, emanando vestígios formais, mas também de tom dramatúrgico, próprios do universo da produção em televisão. Nada invulgar, uma vez mais, no seu contexto, se pensarmos no que grandes mestres de cinema britânicos aprenderam ao longo de anos dentro da BBC e verteram para os seus filmes — de Mike Leigh a Ken Loach. Só que, no seu caso, trata-se de uma transição bem mais demorada do que o habitual.

Mas talvez seja no conflito entre ideias de cinema — as convencionais e as televisivas, de que se tenta libertar e que, de certa forma, tenta perverter — que Hogg encontra o seu espaço inicial de criação, a sua primeira linguagem, estranha em certos pontos, que nos pode confundir em termos de padrões, mas que encantou públicos desde o primeiro momento. A sua primeira longa-metragem, Unrelated (2007), uma história de tensão no seio de uma família em férias numa villa italiana, foi recebida como um retrato fílmico pujante, refrescante e convincente, também dentro dos festivais.

Hogg propõe, nos seus filmes, dramas pessoais e familiares que ecoam modos de intimidade em certa medida semelhantes aos que encontramos em obras de cinema e teatro canónicas no Reino Unido. As personagens encontram-se à mesa, na sala de estar, debatem na cozinha. O quarto pode ser uma arena. Com ou sem sexo. As suas histórias desenrolam-se em clima doméstico, privado. A vários níveis, lembrando-nos dramas Kitchen Sink da nova vaga de cinema e do teatro do início dos 60, em Inglaterra. A classe social retratada é todavia outra, as divisões e decorações das casas também, e os dramas gravitam invariavelmente em torno de mulheres.

A realizadora situa-se no seu lugar de conforto social, de uma classe privilegiada, olhando-a com ironia e particular realismo. Os dramas são psicológicos, emocionais, afectivos, artísticos até, mas afastados de questionamentos económicos — aqueles que fustigam a working class, e que são mostrados por outro tipo de realismo, ainda hoje vivo no cinema britânico. Os seus retratos de personagens e ambientes, não sendo alheios a formas de escrita televisiva, absorvem texturas técnicas e visuais descomprometidas com meios “comerciais” de realização. Há quem sinta na sua frieza naturalista, ancorada numa simplicidade de meios técnicos, nomeadamente de luz, algum desprendimento emocional; e há quem nisto sinta envolvimento e sofisticação sensorial. Tudo muito britânico, portanto.

Souvenir I e Souvenir: Part II marcam um novo capítulo na sua prática de cinema, que o seu terceiro filme Exhibition — um diário cru, sexualmente intrincado, de um casal disfuncional de artistas (com interpretação de Viv Albertine, guitarrista dos Slits, e do artista Liam Gillick) — deixaria antever. Encontramos neles outro sentido de filmagem, outra plasticidade também. Nestes dramas semi-autobiográficos sobre uma estudante de cinema que navega entre o meio artístico e o da sua classe alta e privilegiada, Hogg leva-nos por um cinema menos contraditório e mais alinhado com certas convencionalidades — sendo ambos, por isso, filmes mais consensuais para o público —, com recortes belos da geração e da cultura (incluindo a musical) dos anos 80.

Mas nem por isso as suas retóricas confessionais, os seus planos fixos, a naturalidade e duração do diálogo entre personagens perdem lugar. Nem por isso deixa de colocar-nos na posição, por vezes desconfortável, outras excitante, de voyeurs de interacções hiper-realistas entre pessoas e casais, onde a figura da mulher continua a conduzir a razão narrativa. Aqui, tal como em Exhibition, encontramos um certo espelho de “Eurydice”, na poética de Hilda Doolittle, onde a personagem central se debate contra a arrogância desviante e ofuscante do seu companheiro.

A relação entre a mesma mãe e filha de Souvenir, agora mais velhas, é a premissa do seu último e celebrado filme. The Eternal Daugther é uma história fantasmagórica, em que Tilda Swinton se duplica nos dois papéis centrais, de mãe e filha, de forma deambulatória, existencialista, filmada em digital de forma imaculadamente manipulada, e já não com o mesmo tom aparentemente desprendido e natural dos primeiros filmes. Com ele, Hogg deixa também para trás a experiência sensual, granulada, quente dos Souvenirs. E, com isso, renova uma vez mais a sua linguagem de cinema.

Prova assim Joanna Hogg, com a sua filmografia de seis longas-metragens, que é uma realizadora inquieta, surpreendentemente experimental, abraçando temas e ambientes previsíveis — que continuam a ser conservadoramente os seus — com uma coragem crítica na forma como os aborda e sagazmente reconstrói, a cada passo, desde 2007.

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