Uma câmera mediúnica
Nada é muito sólido nessa paisagem úmida e quente. Nada é muito inequívoco nessas cores baças, entre o marrom e o verde. Enquanto Jun perambula pela comunidade com sua câmera estrangeira, o filme inventaria presenças insólitas, e vai instalando um poderoso estado de indeterminação. Um homem de olhar estatelado reza, repete a palavra itim (“negro” em filipino), e nos faz duvidar sobre seu estatuto existencial. Uma fila de mulheres atravessa a igreja de joelhos, cantando em uníssono. Ladainhas católicas pontuam a banda sonora, que passa a abrigar um transe ritualístico que inunda o filme inteiro. A agonia de uns, a insônia de outros: há uma atração pelas qualidades intermediárias, pelos lugares de passagem entre uma condição e outra. Ainda antes que um espírito venha perturbar a narrativa, ainda antes que a textura do sonho invada cada espaço da casa, tudo em Itim está carregado de mediunidade.
Em uma de suas incursões, o rapaz encontra Teresa, a irmã de Rosa. Entre os dois nasce uma fascinação instantânea, mediada por um disparo do aparato fotográfico, mas o relacionamento se atravanca à partida. Há algo ancestral que impede o encontro, e o mistério familiar se espalha pelo tecido do filme. Jun testemunha uma encenação da Paixão de Cristo numa estrada vazia, algo estala em seu corpo, e ele parte em disparada para impedir a morte do pai. Há alianças subterrâneas, laços inquietantes entre o visível e o invisível. Teresa destina um bilhete para a mãe com a assinatura de Rosa, e logo não será capaz de impedir a incorporação iminente da irmã morta. Nessa fantasmagoria à luz do dia, há mortos que parecem vivos, mas também há vivos que parecem já ter feito a passagem.
Mais do que esculpir o tempo, a montagem rasga-o uma e outra vez, e o jump scare já não é uma ruptura súbita, como nos filmes de horror que inspiraram Mike de Leon: incorpora-se ao ritmo de Itim como um parasita cômodo. Haverá ralentis e paradas na imagem, cortes abruptos e paralelismos incisivos, mas tudo aqui é de um horror morno, aquático, propício às calorentas maturações. A montagem não é como uma cavalgada rumo a um destino, mas como o cavalo em certas religiões dos trópicos: deixa-se influenciar pelas entidades que se espalham pelo território, pela música das rezadeiras, pelos tempos do ritual e do sonho. Quando a narrativa for tomada pela interrupção e a fotografia estourar as luzes para abrigar o pesadelo, quando o desfoque desfigurar os móveis para figurar o delírio, não haverá surpresa, pois a vigília do filme já estava permanentemente tomada pelo transe. Itim é um filme de espíritos e de fantasmas, mas desses que estão por toda a parte, e que não se desprendem inteiramente do cotidiano.
No empilhamento das esculturas de santos pelos cômodos que o filme atravessa, nas meias-luzes dos interiores amadeirados ou no mormaço a céu aberto, na dubiedade das fotografias incertas, Itim é um inventário de presenças intermediárias, entre a carne e a imagem. E se a câmera fotográfica é uma disparadora de descobertas que só ela pode revelar, não será como no Blow-up de Antonioni. Aqui, o aparelho é uma mediação a mais num mundo já infestado de outros mediadores. Em Itim, os protagonistas, a iluminação, a câmera, a paisagem, tudo se torna mediúnico: são superfícies porosas, umbrais entre os vivos e os mortos, entre a matéria e a memória. Nesse baile das permeabilidades, os espíritos são convidados a dançar entre nós.
Victor Guimarães
Crítico de cinema, programador e professor. Doutorado em Comunicação Social pela UFMG, com passagem pela Université Sorbonne-Nouvelle (Paris 3). Colaborou com publicações como Cinética, Con Los Ojos Abiertos, Senses of Cinema, Desistfilm, Outskirts, Documentary Magazine, La Vida Útil, La Furia Umana e Cahiers du Cinéma. Foi programador no forumdoc.bh, na Mostra de Tiradentes e na Woche der Kritik de Berlim, e realizou programas especiais para espaços como XCèntric (Barcelona), Essay Film Festival (Londres) e Cinemateca de Bogotá. Atualmente, é programador do FICValdivia (Chile) e diretor artístico do FENDA (Brasil).
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