El auge del humano 3
Lendl Barcelos
31 de Maio de 2024

Ondeada

Ontem à noite sonhei que o mundo se condensava num único plano; já tínhamos falado sobre o sol que explodiu; preparei as minhas memórias quando estava sozinha; um multibilionário sem vergonha nunca foi algo que se quisesse ser; os conflitos entre um rio e o mar tinham acalmado; e não havia nenhum significado oculto que precisasse de ser revelado. O sonho continuava a mudar de foco, a mover-se para outros tropos, sem nenhuma necessidade de relação causal. Era diferente de qualquer coisa oferecida por aqueles momentos de reality check rígidos que circunscrevem as possíveis modalidades da vida diária. Era uma ciência antiga mascarada de mito, onde as audiovisões esvoaçavam entre cenas antes vistas, mas às quais se retornava de forma variada como reencarnações alternativas.

O ambiente intuitivo e paradoxal que satura El auge del humano 3, de Eduardo Williams, pede uma linguagem polifónica. As suas adjacências psicadélicas de pessoas, línguas e locais (Argentina, Portugal, Países Baixos, Taiwan, Brasil, Hong Kong, Sri Lanka e Peru) formam uma sensação única que acumula algum sentido ao longo dos 121 minutos da sua duração. Um multinaturalismo habita cada imagem: um estranho realismo que se começa a confundir com o fantástico; mas também um surrealismo que resulta da aproximação (ou afastamento) dos vários pormenores que se encontram na expansividade do dia a dia.

Williams nunca sugere sair do universo onírico que consegue criar: não há necessidade de procurar pistas ou de juntar as coisas. O filme encontra-se numa (i)lógica de sonho até ao fim, e não uma que seja controlada de forma lúcida. Um sonho lúcido traz escondidas certas dinâmicas de vida acordada para a possibilidade incontida do espaço-tempo do sonho: um controlo individualizado a regular a atenção que delimita e concretiza o que está por vir. Sonhar sem lucidez — o que poderíamos chamar de “sonhar lúdico”, seguindo a sugestão do The Occulture, o coletivo teórico tecnosónico — é deixar reinar a estratégia das impossibilidades e das banalidades que o inconsciente produz. Tudo, desde as experiências sem ego mais fora que desafiam a física, até aos mais banais episódios quotidianos, vale para a sonhadora não-lúcida. A mente é deixada a vaguear, sendo testemunha de onde e de quando quer que seja.

É esta sensação que Williams conjura no seu filme. A câmara segue um movimento quase continuo, nunca decidindo realmente centrar-se nas pessoas do filme. Na verdade, o efeito deriva de uma técnica que começou a explorar para a curta-metragem Parsi (2019), desenvolvida em colaboração com Mariano Blatt, que usa uma câmara em 360 graus para criar imagens que são depois editadas para o ecrã 2D usando um dispositivo de RV. Como descreve Williams numa entrevista para a Metrograph sobre o filme, “o que aparece como fotograma sou eu a mexer-me enquanto revejo as filmagens”. O sentido bizarro, e contudo envolvente, da audiovisão incarnada que testemunhamos ao longo de El auge del humano 3 é, de forma bastante literal, o que é ver a partir da perspetiva de Williams, de ser transportado do nosso aqui e agora para um outro lugar dele e de ser levado pela sua atmosfera específica de prestar atenção. Em algum momento, parece até que parte da lente se torna distorcida, mas as falhas que daí resultam (que regressam com alguma frequência) são deixadas como artefatos visuais que dobram o registo visual.

Da mesma forma, o diálogo poliglota do filme é desconexo. Aparece como um fluxo de consciência parcialmente programado, às vezes servindo enquanto ponto de articulação à volta do qual os elementos visuais da cena podem perambular. Enquanto flutuamos por uma floresta, ouvimos uma das personagens mencionar que decidiu estudar gases, para alcançar o seu objetivo de transparência, de desaparecer completamente. Apanhamos uma troca sobre Cracatoa, a lendária explosão vulcânica, uma das erupções mais sonoras e mais violentas na história. Uns minutos mais tarde, seguimos duas outras personagens que nadam juntas, a conversar sobre os seus desejos. Enquanto uma sonha em tornar-se músico, a outra simplesmente (ainda que surpreendentemente) quer especializar-se em ver e ouvir.

As persistentes mudanças de rumo da narrativa do filme dão-lhe uma aura de realismo mágico documental. Estamos constantemente na dúvida sobre se o que estamos a testemunhar é uma ocorrência fortuita que aconteceu durante as filmagens ou se foi algo planeado por Williams. Mas a experiência de testemunhar o filme é tão vívida que não importa qual destas é verdadeira. Ver El auge del humano 3, de Eduardo Williams, é como usar um olhouvido para algo que não é facilmente previsível nem interpretável, mas que permanece tentador, versátil e em movimento — algo que desafia constantemente os limites variáveis da observação do olhouvido.

Lendl Barcelos
Artista, “katafísico” e DJ, Lendl Barcelos explora as matérias vibratórias, muitas vezes da dimensão aural, mesmo quando estas ocorrem para além dos limites humanos normativos. Ao lado de Tarek Atoui, Allison O’Daniel, Myriam Lefkowitz & Valentina Desideri, integrou o projeto Infinite Ear, baseado na premissa de que a surdez constitui uma especialização em som. Os seus trabalhos têm sido apresentados na Biennale Architettura XVIII (Veneza), Centro centro (Madrid), Garage (Moscovo), Inkonskt (Malmo), Q-O₂ (Bruxelas), Donau (Porto), e tem textos publicados por Urbanomic, re:press, MIT e Norient.

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