Para um espectador desprevenido e tangente à cultura cinéfila, Diva não é coisa que se consiga apreender à primeira, embora a sedução das imagens tenha um poder pelo inesperado, por vezes mesmo encantatório. Se disseram a esse espectador que vai ver um filme francês de 1981, o caso torna-se ainda mais encriptado. A imagem comum do cinema francês ficou indelevelmente associada a uma certa estética existencialista herdada de Sartre e do seu comprometimento (engagement) político, ao cinema de autor, a nomes como Truffaut, Godard, Rohmer, Chabrol, Rivette, Valcroze, entre outros — foi a Nouvelle Vague, vinda dos anos 1950, sublinhada pela notoriedade do Festival de Cannes e pela autoridade dos Cahiers du Cinéma (desde 1951 com André Bazin até 1958), da crítica e dos cineclubes. O cinema era arte: a sétima. Dizer cinema francês era como agitar um antídoto poderoso contra a lógica comercial e a indústria do cinema comandada pelo bosque sagrado de Hollywood, pelas superproduções, Óscares e estrelas.
Em 1981, os anos de ouro da Nouvelle Vague já iam longe, tal como o julgamento hegemónico da cinefilia. A influência da televisão, do gravador de vídeo e do DVD era crescente e eram já claras a diversidade da crítica e a rejeição frequente dos filmes pelo público, cada vez mais envolvido em consumos culturais massificados. O Cinema Novo não tinha desaparecido, mas o desencontro entre a Nouvelle Vague e o público ia-se aprofundando (a propósito, quando Manoel de Oliveira era confrontado com a escassez de público, a resposta era pronta e carregada de ironia: públicos, são os urinóis).
A máquina de Hollywood corria acelerada, tal como a marginalização da cultura gaulesa. A partir de 1981 (ano de estreia de Diva), desenvolvia-se, com François Mitterrand, um “socialismo” à francesa, com Jack Lang no Ministério da Cultura e um forte intervencionismo presidencial nos Grand Travaux (1981–1995), que iriam mudar a face de Paris e dos seus equipamentos culturais de referência, desde logo o Grand Louvre, a Ópera da Bastilha, a Biblioteca Nacional, o Museu de Orsay, a Cidade da Música, ou o Instituto do Mundo Árabe (noutro registo, a Eurodisney veio em 1992). Os tempos corriam agitados pelas grandes operações para engrandecer as bilheteiras, o turismo dito cultural, e a espectacularização de Paris. Noutro quadrante cultural, desenvolvia-se a importância do pensamento e da filosofia francesas: Barthes (n.1915), Lyotard (1924), Deleuze (1925), Foucault (1926), Baudrillard (1929), Derrida (1930), Guy Debord (1931), Guattari (1930), Bourdieu (1930), entre outros, qualificados de pós-modernos e a maioria deles muito destacados pela French Theory dos EUA.
Quando, em 1981, Jean-Jacques Beineix estreia o seu primeiro filme, Diva, a reacção do sistema que se tinha entrincheirado em torno da Nouvelle Vague explodiu de forma sobranceira e grossa. Chamaram-lhe o Cinéma du Look (curiosa designação para o cinema, arte visual por excelência), pastiche, superficial e outros mimos — F. Cuel (Cinematographe, 1981, 66) escreveu: pensam que estão a ver um filme mas é apenas a montra de um shopping.
Diva usa uma estética neo-barroca, nada naturalista (e disso consciente), a exuberância da luz e da cor, do movimento, da montagem complexa, a importância do estúdio e do uso de tecnologia sofisticada, as ambiências poderosas, espectaculares e sedutoras, a mistura do mais puro kitsch, do cartoon, do videoclipe da publicidade, da pop, etc., com a alta erudição, sucatas de luxo carregadas de signos e fétiches — que, ao mesmo tempo, corroem os seus próprios referentes através do jogo do humor, da desconstrução, de intertextualidades (a saia esvoaçante de uma Marilyn), do absurdo e do incongruente. Fredric Jameson chamou-lhe o primeiro filme pós-moderno francês.
No meio do vendaval das imagens, de histórias cruzadas que se enredam umas noutras, das perseguições, crime, violência, anti-heróis, e dos jogos de espelhos que confundem personagens e situações, Jules é um personagem quase esfíngico, bastante silencioso, sofisticado como o loft onde vive, focado na magia do canto de Cynthia, a soprano, a Diva que se recusa a gravar a sua voz. A artista só reconhece plenamente a autenticidade da sua arte no momento mágico do contacto directo com o público, hic et nunc. Apesar do seu agente lhe dizer que só na gravação a voz se eterniza, Cynthia resiste e permanece fiel ao que W. Benjamin pensava sobre A obra de arte na época da sua reprodução mecanizada (noutra versão, da sua reprodutibilidade técnica): da sua origem mágica e ritual, da importância da sua recepção num momento irrepetível que produz a aura da sua aparição. A reprodução banaliza, transforma em mercadoria, em objecto ou acontecimento politicamente manipulável, em imagem superficial aquilo que representa. O filme é o exemplo de uma forma de arte cujo carácter é, pela primeira vez, integralmente determinado pela sua reprodutibilidade (contrariamente ao momento único do teatro e à copresença física de artistas e público: corpos presentes). O filme é mise-en-scène, gravação, ângulo de enquadramento, corte, montagem, efeitos especiais, misturas…, tudo possível só pelo artifício dos aparelhos, da técnica, da câmara capaz de fixar o inconsciente óptico como a psicanálise nos inicia no inconsciente pulsional.
W. Benjamin disse que o filme se converte, assim, no objecto actualmente mais importante dessa ciência da percepção que os Gregos tinham designado pelo nome de estética. O Estado totalitário manipula e controla as massas através dessa estetização (o capital também). Cynthia diz que é o mercado que se deve adaptar à arte e não o contrário — por isso, não grava para reproduzir e vender. Jules diz-lhe que aquela gravação é também única, e assim mantém a sua alta-fidelidade à voz de Cynthia.
Toda a violência do filme — os gangsters e os polícias —, se move por gravações que, reproduzidas, provocam efeitos muito distintos: uma denuncia criminosos; outra transforma a música em negócio da música. Nem Jules nem Cynthia se revêem nisso; fecham-se nos seus segredos e no inconfessável que partilham. O filme é magnífico, e a única questão é que a crítica e os jogos de poder e de legitimação que a movem o escarafuncharam em demasia; quiseram que fosse uma coisa contra outra, uma banalidade contra a sacralidade da Nouvelle Vague. Demasiado ruído. Enganaram-se.
Álvaro Domingues
Álvaro Domingues é geógrafo, professor e investigador da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo (CEAU-FAUP). Entre outras obras, é autor de Portugal Possível (2022, com Duarte Belo), Paisagem Portuguesa (2022, com Duarte Belo), Paisagens Transgénicas (2021), Volta a Portugal (2017), Território Casa Comum (2015, com N. Travasso), A Rua da Estrada (2010), Vida no Campo (2012), Políticas Urbanas I e II (com N. Portas e J. Cabral, 2003 e 2011), e Cidade e Democracia (2006). É sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Escreve regularmente no jornal Público.
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