Deprisa, deprisa, Carlos Saura
Marcos Cruz
6 de Maio de 2023

O cinema e a vida no fio da navalha


Escrito em plena época de transição espanhola para a democracia, com a pesada herança de Franco como pano de fundo, Deprisa, deprisa (1981) é um filme sobre a tensão entre a energia de vida que transborda na juventude e os limites apertados de uma sociedade disciplinada durante décadas para condenar e reprimir qualquer assomo de irreverência. Ao ritmo do flamenco, ele próprio um fruto e um símbolo da fúria de viver em comunidades marginalizadas e amputadas de futuro, acompanhamos um grupo de jovens desacreditados da bondade do sistema e das responsabilidades sociais, que enveredam pelo sonho tão crepitante quanto ingénuo de surfar na adrenalina da vida como se não houvesse amanhã, enchendo os bolsos e o organismo de dinheiro e drogas e a alma inquieta da possibilidade do amor. Carlos Saura entrega-lhes todo o protagonismo, seduzido pela química que se estabelece entre eles, mas não cai na tentação de os glorificar, como o demonstram de forma particularmente bela os planos em que lhes contrapõe o vazio de paisagens desoladas — um pouco à imagem do que, oito anos antes, Terrence Malick fizera com Sissy Spacek e Martin Sheen, em Badlands (1973). No filme de Saura, aliás, o “pano de fundo”, apesar de quase apenas picar a película como uma agulha de acupunctura, tem uma importância capital: a Espanha dos bairros deserdados dos subúrbios, em contraste com a moral beata, o policiamento feroz e outros vestígios da ditadura que acordam sob o mesmo sol que ela. O fio da navalha é a pauta única de Deprisa, deprisa, não há estrada alternativa nem o realizador a procura, como se para captar a essência do que queria tivesse de fugir com ela no mesmo carro roubado. É o espírito da delinquência juvenil, o desejo irreprimível de desafiar os limites da vida, aquilo que mais interessa a Carlos Saura, assim colocado, também ele, numa linha de fronteira entre conduzir e ser conduzido. Chamando a si aspectos tonais do Neo-realismo e da Nouvelle Vague, o filme tem os ingredientes distintivos do que ficou conhecido como “cinema quinqui” espanhol, apresentado ao mundo por José Antonio de la Loma em Perros Callejeros (1977) — cujo título, não apenas casualmente, reverbera no posterior Reservoir Dogs (1992), de Tarantino. Ainda que tradicional do género, o uso de não-actores, a exemplo do casal-abismo Ángela (Berta Socuéllamos) e Pablo (José Antonio Valdelomar, que viria a morrer de overdose poucos anos depois), não apenas reitera o entusiasmo de Saura por uma certa autenticidade a correr nas veias da aventura, como confirma a sua vontade de se confrontar enquanto cineasta, para que mais pertinentemente possa confrontar o cinema e a relação deste com a vida. Mas, mesmo se lhe retirarmos a substância sociológica que transporta e as reflexões e conjecturas que ela inspira, Deprisa, deprisa vale, e muito, pela experiência de alta intensidade que proporciona, fazendo-nos mergulhar os sentidos todos no sem-sentido e ir com ele para onde nos leve.

Marcos Cruz

Licenciado em Comunicação Social pela Escola Superior de Jornalismo do Porto, integrou a redação do Diário de Notícias durante 16 anos, a maior parte dos quais como responsável pela secção de Cultura da delegação Norte. Colaborou com os jornais Correio da Manhã e Norte Desportivo e fez crítica de teatro, música e cinema, tendo sido júri em vários festivais de cinema do país. É autor do livro Os pés pelas mãos (Coolbooks, 2018). Atualmente, é copywriter na Casa da Música e organiza e modera um ciclo de debates no Coliseu do Porto.

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